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Porto Maravilha: imaginários e identidades no espaço urbano (re)significado

Porto Maravilha: imaginary and identities in urban space (re)signified

Flávia Barroso de Mello

Doutoranda em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: flaviamello74@gmail.com

Luís Alexandre Grubits de Paula Pessôa

Professor Adjunto do Departamento de Administração da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil. Professor dos Programas de Pós-Graduação e de Graduação em Administração e Coordenador Acadêmico do MBA em Marketing da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil. Doutor em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie , Brasil. E-mail: lpessoa@iag.puc- rio.br

Resumo:

A partir das narrativas institucionais veiculadas no site portomaravilha.com.br e de algumas manifestações culturais que se concretizam no porto do Rio, pretende- se, neste artigo, refletir sobre a interseção entre os grandes projetos de revitalização urbana patrocinados pelo poder público e as disputas que envolvem a produção de novos imaginários e identidades culturais na região portuária. Para tanto, o aporte teórico-metodológico parte dos estudos culturais (PESAVENTO, 2007, 2014; HALL, 2000), da sociologia compreensiva (MAFFESOLI, 1996, 1998, 2001) e das teorias sobre memória (POLLACK, 1989; HALBWACHS, 1990). O percurso da análise se dá na interseção entre os campos teóricos visitados e o corpus analisado e aponta pistas sobre uma estratégia discursiva institucional que apropria símbolos e imaginários da cidade, do passado e do presente, para inserir o Rio de Janeiro no cenário de cidades globais.

Palavras- chave:

Memória; Identidade; Branding; Porto Maravilha; Marca Rio.

Abstract:

Based on the institutional narratives published on the website portomaravilha.com.br and some of the cultural events that take place in the port of Rio, this paper intends to reflect on the intersection between urban revitalization projects sponsored by the government and the disputes involving the production of new imaginery and cultural identities in the port region. Therefore the theoretical-methodological contribution starts from the cultural studies (PESAVENTO, 2007, 2014, HALL, 2000, SEVCENKO, 1998, 2001) and memory theories (POLLACK, 1989; HALBWACHS, 1990). The course of the analysis occurs at the intersection between the theoretical fields visited and the analyzed corpus and the analysis points out clues about an institutional discursive strategy that appropriates symbols and imaginaries of the city, past and present, with the purpose of inserting Rio de Janeiro in the scenario of global cities.

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Keywords :

Memory; Identity; Branding; Porto Maravilha; Brand Rio.

1 Introdução

O Prefeito Eduardo Paes, em discurso público no lançamento das obras do Porto Maravilha1, apoia-se na memória da reforma realizada pelo Prefeito Francisco Pereira Passos, em sua gestão de 1902 e a 1904, para legitimar as mudanças que seriam impostas à cidade, a partir da reurbanização do porto, que foi iniciada em 2011. É fato que a cidade do Rio de Janeiro do começo do século XX era muito diferente da atual metrópole, e que as obras realizadas por Pereira Passos tiveram tal relevância que reordenaram a forma de viver e se locomover na cidade (com perdas e ganhos) que perdura, grosso modo, até os dias atuais. Guardadas as devidas ressalvas, no entanto, o período de modernização da então Capital da República – denominado pela imprensa da época como Regeneração – de fato guarda aproximações e afastamentos em relação a atual revitalização do Porto do Rio, justificando, assim, a referência feita pelo atual prefeito da cidade.

A história do porto carioca se confunde com a história da própria cidade. No período colonial, o porto teve um papel decisivo, pois além de ser um importante ponto de reabastecimento na longa viagem de Portugal rumo ao Rio da Prata e também para as embarcações portuguesas que atravessavam o Atlântico Sul vindas da Europa, alimentou o que foi o principal elemento da economia da cidade ao longo de todo o período colonial, e até boa parte do século XIX: o tráfico de escravos. No começo do século XIX, a chegada da Família Real destaca ainda mais a importância do porto para o Rio, tendo em vista que a principal ação política de D. João VI para a América Portuguesa foi a abertura dos portos à Grã-Bretanha. Já na segunda metade do século XIX, quando o Brasil desempenhava um papel importante na crescente divisão internacional do trabalho com a produção e comercialização do café, a importância do porto foi impulsionada pela Abolição da Escravatura e pelo advento

1 Declaração de Eduardo Paes (O GLOBO. 9/7/2012) “Em campanha Paes tenta vincular sua imagem às transformações feitas por Pereira Passos”. Disponível em: <https://goo.gl/5V1mYt>. Acesso em: jul. 2016.

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da República. Com a queda na produção cafeeira, no entanto, as mudanças que ocorreram na economia afetaram o país e em especial a Capital da República, que se transformou “num grande centro cosmopolita, ligado intimamente à produção e ao comércio europeus e americanos” (CHALHOUB, 2001, p. 250). Assim, o porto da cidade perdeu sua importância como exportador de café e passou a se configurar em um mercado de consumo, um centro distribuidor de artigos importados (CHALHOUB, 2001), o que justificaria sua remodelação no que se configurou como a primeira grande intervenção urbanística pela qual passou o Rio de Janeiro, já no começo do século XX – a Reforma Passos .

Cerca de cem anos mais tarde, a região passa por novas intervenções, numa parceria entre a Prefeitura da cidade, os governos estadual e federal e a inciativa privada. A empresa de capital misto Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região Portuária (CDURP) administra a operação urbana do Porto Maravilha2, cujo projeto contempla quatro eixos na sua execução – estímulo ao uso residencial da região; melhoria na infraestrutura; incentivo às atividades de comércio e à indústria que se desenvolvem na área; e promoção da cultura e entretenimento na região. Observa-se, no entanto, um interesse especial pelas diretrizes relacionadas à cultura e entretenimento, evidenciado tanto pelos discursos de sujeitos envolvidos no processo, como pela materialização desses discursos, através, por exemplo, da construção de dois monumentais equipamentos culturais que abrigam o Museu de Arte do Rio (MAR) e o Museu do Amanhã, ambos localizados na Praça Mauá, bem como da criação do Circuito Histórico e Arqueológico da Herança Africana, cujo grupo de trabalho curatorial se propõe a construir diretrizes para implementação de políticas de valorização da memória e proteção do patrimônio cultural da região3. No entanto, para além de sua relevância comercial e do resgate de uma história dita oficial, o Porto é um espaço de disputas simbólicas em busca da construção de sua

2 Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Lei Municipal complementar n. 101/2009. Disponível em: <https://goo.gl/XG9ozc>. Acesso em: 03 mai. 2016 .

3 Ver: https://goo.gl/1QeWws

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memória, de suas historicidades4 e seus significados e da (re)construção de uma identidade .

O projeto Porto Maravilha ganhou relevância e foi viabilizado em função da realização da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016. Junto a outros megaeventos que têm pontuado as cenas urbanas do Rio de Janeiro, desde o início do século XXI, configuram-se em uma clara tentativa de revalorização e reconstituição da cidade e seus espaços públicos, que passam a ser revestidos de imaginários coletivos que lhes servem de suporte comunicacional para a construção da marca - cidade e, consequentemente, para possíveis investimentos e ações de comunicação, potencializando negócios em diversos segmentos da economia. Observa-se, assim, nos grandes eventos realizados tanto pelo poder público como pela iniciativa privada, o foco na (re)construção e no fortalecimento de simbolismos, tradições, memórias e estilos de vida que remetem a um ethos de cidade ideal. Sob a ótica do mercado, portanto, mesmo lugares – cidades, países – passam a ser observados como mercadoria. Para Sanchez (2010), pode-se observar a relação entre a reestruturação dos espaços urbanos e as mudanças culturais relacionadas ao consumo, aos modos de vida e às formas de (re)apropriação desses espaços.

A partir, portanto, da requalificação do Porto do Rio pretende-se, neste artigo, refletir sobre a interseção entre os grandes projetos de revitalização urbana patrocinados pelo poder público e as disputas que envolvem a produção de novos imaginários e identidades culturais na região portuária. O aporte teórico - metodológico parte dos estudos culturais (PESAVENTO, 2007, 2014; HALL, 2000 ), da sociologia compreensiva (MAFFESOLI, 1996, 1998, 2010) e das teorias sobre memória (POLLACK, 1989; HALBWACHS, 1990) para observar de que forma a paisagem dada, construída e organizada pelo poder publico se projeta e se reconfigura em novos imaginários e identidades culturais. Para alcançar o objetivo proposto, foram analisadas as narrativas institucionais do Projeto Porto Maravilha, através do site portomaravilha.com.br, e algumas manifestações culturais na região portuária.

4 Entende-se o conceito de historicidade, a partir de Agnes Heller (1993, p. 389), não como “[...] aquilo que acontece conosco, tampouco alguma coisa na qual entrássemos como uma vestimenta”, mas como consciência da ação do homem no mundo que se faz sempre num espaço- tempo.

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2 Imaginário, identidade e memória na cidade

Em concordância com o pensamento de Geertz (2008), é através da cultura, dos padrões simbólicos que circulam em determinada sociedade, que os sujeitos encontram sentido para o mundo em que vivem; são estes padrões de símbolos que lhes conferem orientação, sentimento de pertencimento e senso de comunidade. Na contemporaneidade, destaca-se a presença indiscutível da mídia e do consumo nessa teia cultural (DEBORD, 1997; KELLNER, 2001), promovendo imbricamentos de diversas ordens nas relações sociais e nas construções simbólicas que articulam os modos de ser e de viver no cotidiano.

Maffesoli (2001) sugere que há uma relação de proximidade entre a cultura e o imaginário. Para o autor, a cultura, na contemporaneidade, é coletiva e vincula- se aos grupos humanos; serve de alimento aos sonhos construídos por estes grupos, criando uma identificação com os novos mitos do cotidiano. Já o imaginário, que também é coletivo, é, em paralelo, ainda mais: é a aura que a ultrapassa e alimenta a cultura. O autor, que não é afeito ao rigor cartesiano da conceitualização, cita Gilbert Durand para esboçar uma proposição ao entendimento do que seja imaginário, a partir da relação incessante entre a subjetividade e as intimações objetivas. Para Durand, as intimações objetivas são a relação entre as coerções sociais e a subjetividade; ou seja, trata-se dos limites impostos a cada sujeito pela sociedade. Essa associação transita, paralelamente, entre algo sólido, a vida com suas diversas modulações, e algo que ultrapassa essa solidez. “Há sempre um vaivém entre as intimações objetivas e a subjetividade. Uma abre brechas na outra” (MAFFESOLI, 2001, p. 80).

Nesse viés, cabe destacar a proposição de Sandra Pesavento (2007, 2014) para pensar a cidade a partir de três perspectivas: a da materialidade, a da sociabilidade e a da sensibilidade.

A cidade é percebida como materialidade quando se reconhece estar diante do fenômeno urbano, em contraposição à realidade rural. Ou seja, quando se identifica uma ação humana sobre a natureza.

Segundo a autora, a cidade pode, ainda, ser compreendida pelo viés da sociabilidade, com seus atores, as relações estabelecidas entre eles, os grupos, as

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práticas de interação, as festas, comportamentos e hábitos. Aqui cabe uma reflexão sobre os espaços de sociabilidade e de socialidade na cidade, proposta por Maffesoli (1996, 2001). Para o autor, a esfera da sociabilidade está relacionada às regras e normas da socialização em que as pessoas atuam como cidadãos. Já na esfera da socialidade, há um deslocamento do sujeito político, das condutas partidárias, tratando, assim, da dimensão dos sentimentos mais íntimos, primários. A socialidade é “uma estética descompartimentada”, que permite “esse estar-junto desor denado, versátil” (MAFFESOLI, 1996, p. 13). Para o sociólogo, a experiência do Outro é aquilo que dá base à sociedade e dá importância ao que ele chama de fusão comunitária, em que as relações se efetivam pelo que o autor denomina de relação táctil, do estar-junto. “O mundo de que sou é, portanto, um conjunto de referências que divido com outros” (MAFFESOLI, 1996, p. 259).

A socialidade de Maffesoli (1996, 1998, 2001) converge para a proposta de olhar a cidade a partir da dimensão da sensibilidade, sugerida por Pesavento (2007, 2014). Assim, a autora afirma que para cada cidade real, concreta, visual, táctil, consumida e usada no dia a dia há outras tantas cidades imaginárias, representadas, ao longo do tempo, pela palavra escrita ou falada, pela música, pela imagem, pelas práticas cotidianas, pelos rituais e pelos códigos de civilidade de seus citadinos, pois “cidades são, por excelência, um fenômeno cultural, ou seja, integradas a esse princípio de atribuição de significados ao mundo. Cidades pressupõem a c onstrução de um éthos, o que implica a atribuição de valores para aquilo que se convencionou chamar de urbano” (PESAVENTO, 2007, p. 3 ).

Neste mesmo viés, Maffesoli (1996) afirma que a cidade é sensível e essencialmente relacional. “Seus lugares de encontro, suas sensações, seus odores, seus ruídos são constitutivos dessa teatralidade cotidiana que faz dela, no sentido forte do termo, um objeto animado, uma materialidade dotada de vida” (MAFFESOLI, 1996, p. 277).

Muito mais do que uma aglomeração de concreto, portanto, a cidade é um campo simbólico, em que se travam lutas políticas, jogos de representações, identidades e relações de poder, em processo contínuo de construção. Nesse sentido, nas palavras de Pesavento,

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[...] a cidade sensível é aquela responsável pela atribuição de sentidos e significados ao espaço e ao tempo que se realizam na e por causa da cidade. É por esse processo mental de abordagem que o espaço se transforma em lugar, ou seja, portador de um significado e de uma memória; que passamos a considerar uma cidade como metrópole, [...] que criamos as categorias de cidadão e de excluído para expressar as diferenças visíveis e perceptíveis no contexto urbano fazendo com que se criem novas identidades a partir do gesto, do olhar e da palavra que qualifica; que falamos de progresso ou de atraso, que distinguimos o velho do antigo; que construímos a noção de patrimônio e instauramos ações de preservação, ou, em nome do moderno, que redesenhamos uma cidade, destruindo para renovar (PESAVENTO, 2007, p. 4, grifo da autora).

A construção da identidade local de um lugar, portanto, está diretamente relacionada ao seu passado e ao atual ambiente histórico, político, econômico, legal e cultural em que está inserido. Nos termos de Hall (2000 p. 109), essa construção tem a ver com a produção “não daquilo que somos, mas daquilo no qual nos tornamos”. Assim, as questões sobre quem podemos nos tornar, como nós temos sido representados e como essa representação afeta a forma como nós podemos nos representar se sobrepõem às questões relacionadas a quem nós somos ou de onde nós viemos. O autor entende identidade, portanto, a partir de um viés discursivo, como uma construção sempre em processo, em que as dinâmicas culturais provocam suturas e fixações, discursos e práticas que, por um lado, tentam interpelar os atores a assumirem seus lugares de sujeitos sociais e, por outro lado, produzem subjetividades que os constroem como sujeitos agentes. Ou seja, para Hall (2000), uma identidade nunca é fixa, estável, ela é constitutiva a partir da relação com o Outro, a partir da différance ou por meio dela.

A construção cultural de uma identidade, finalmente, se dará a partir dos significados atribuídos aos espaços sociais, aos lugares socialmente experimentados, pelas narrativas produzidas por diferentes agentes, a partir das disputas que envolvem a apropriação simbólica da materialidade, dos espaços construídos. A partir desse olhar, portanto, os megaeventos, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, e a consequente revitalização de áreas urbanas antigas representam momentos privilegiados para refletir sobre a questão das identidades e projetos que se pensam para a cidade.

Narrar, conforme o pensamento de Paul Ricoeur (1994, 1995,1997), significa configurar a existência na vivência cotidiana de nossos atos. Para o autor, narrar é

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viver cotidianamente e produzir reinterpretações. Em Comunicação, mídia e consumo, Barbosa (2009) sinaliza que, para Ricouer, os conectores históricos produzem identidades narrativas em busca da construção do tempo histórico, ou seja, só se narra o que acontece e se desenvolve no tempo (Ricoeur, apud Barbosa, 2009). Se a construção cultural de uma identidade pode ser entendida como uma narrativa de si e dos outros, em constante construção, cabe, portanto, problematizar o conceito de memória coletiva, de Maurice Halbwachs (1990), uma vez que essas narrativas são produzidas com base no acionamento das memórias de quem as narra. Para o autor, a memória não é puramente individual; ela é um produto da i nteração social, do meio em que se vive. E é no presente que essa memória é acionada como recurso para a construção de um futuro que atenda às aspirações do presente. Halbwachs (1990, p. 16) afirma que “se o que vemos hoje tivesse que tomar lugar dentro do quadro de nossas lembranças antigas, inversamente essas lembranças se adaptariam ao conjunto de nossas percepções atuais”.

Pollak (1989) assim, como Halbwachs, insiste na memória “como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes” (Pollack, 1989, p. 2). Além de socialmente construída, para o autor a memória é seletiva; ou seja, há, um trabalho constante de enquadramento da memória. É preciso escolher o que vai ser lembrado e o que deve ser esquecido, reforçando que as preocupações do presente são um elemento de estruturação da memória. Desse modo, pode-se pensar a construção da identidade não apenas como algo individual ou coletivo, mas como uma constante negociação entre indivíduo e sociedade, sempre em processo de interação e fluxos. Assim, os sujeitos não constroem uma única e estática identidade, mas configuram-se em múltiplas identidades, sempre em relação com sua alteridade.

3 Do Porto ao Porto Maravilha

A região portuária, por anos escanteada na administração pública, voltou a ser cobiçada como potencial para investimentos a partir do momento em que a cidade passa a ser gerida por uma lógica empresarial. A operação urbana do Porto Maravilha está baseada no modelo de planejamento urbano estratégico, em que a

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cidade-mercadoria passa a ser vendida a partir das políticas do Estado que cumprem, então, um receituário estratégico para inseri-la nos fluxos globais. A cidade, portanto, é transformada e gerida como uma empresa, o plano diretor e o zoneamento são descartados, uma vez que não atendem aos interesses do mercado. Assim, no mundo globalizado, no lugar da regulação, surgem as negociações por projeto, concretizando o que o urbanista francês François Ascher denominou de urbanismo ad hoc ( apud VAINER, 2000, 2013, 2016). Sanchez (2010, p. 67) argumenta que é difícil encontrar nestes projetos “qualquer identidade com o entendimento da cidade como espaço da política, do conflito e da construção da cidadania”.

E os megaeventos precipitam, intensificam, generalizam a cidade de exceção. No rastro da gestão urbana por projetos, portanto, a revitalização de regiões portuárias é indicada como fase importante do processo de mudança da cidade. Por isso, tornaram-se tendência mundial5. Inserida no contexto dos megaeventos internacionais, a (re)construção da imagem da cidade é legitimada pelo discurso institucionalizado da competitividade. Arantes (2000) aponta para uma estratégia de utilização de empreendimentos-âncora; ou seja, de grandes projetos de edificações com uso cultural, considerados como elementos alavancadores da requalificação de áreas urbanas degradadas. Essa estratégia tem-se mostrado bastante eficiente para a indústria turística e os negócios que envolvem a cultura e o branding das cidades, mas muito pouco para os interesses das comunidades locais.

A inspiração do projeto atual de reurbanização do Porto do Rio é impor tada de modelos de cidade como Barcelona, por exemplo, que se reinventaram a partir de megaeventos6. Os ideais de progresso, dessa forma, não se baseiam na simples destruição do passado para dar lugar ao novo, mas na ressignificação da realidade para se adequar às exigências dos padrões do comércio exterior, atualizando, portanto, o modelo de modernidade urbana imposto por Passos7, que já no início do século XX privilegiava tanto os aspectos estruturais e racionais da modernização quanto os estéticos. O produto final da reurbanização contemporânea de Paes materializa-se na crescente mercantilização da cultura, uma vez que na lógica

5 Sobre a tendência mundial de revitalização de regiões portuárias, ver ANDREATTA (2010).

6 Ver: https://goo.gl/c8gSGL

7 A Reforma Urbana de Pereira Passos foi inspirada na reurbanização de Paris, realizada pelo Barão Haussmann, em meados do século XIX, que transformou Paris no símbolo da urbe moderna.

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cultural contemporânea o consumo não está focado apenas em bens, mas também em entretenimento, lazer, diversão; o que é apontado por Sanchez (2010), entre outros, como um dos imperativos do planejamento urbano que determinam as características do espaço transformado em mercadoria. Dessa forma, observa-se, na região do porto que as reformas estruturais para estimular o uso residencial da região, as melhorias na infraestrutura e o incentivo às atividades de comércio se dão a reboque da revitalização cultural da área8, fortemente apoiada nos dois monumentais equipamentos culturais que a região abriga – o MAR e o Museu do Amanhã – e n a patrimonialização da região; como se observa, por exemplo, nas escavações do Cais do Valongo, cujas ruínas foram trazidas à tona com as obras do porto e é alvo de lutas simbólicas travadas por diversos atores com interesses distintos, e na restauração e patrimonialização de outros pontos históricos, como o Jardim Suspenso do Valongo e a Igreja de São Francisco da Prainha. Dessa forma, observa-se que a história da região portuária é traçada, material e simbolicamente, em consonância com o processo de desenvolvimento da cidade do Rio de Janeiro e também da inserção do Brasil no cenário econômico internacional, desde a primeira grande intervenção urbanística à qual a cidade foi submetida, promovida por Pereira Passos. No entanto, nem sempre os projetos ancorados pelo poder público levaram em conta as experiências dos sujeitos nesses espaços, seus valores, suas memórias e historicidades.

4 Percurso metodológico

Assumindo que o Porto Maravilha é um espaço dinâmico, de relações, vivências e experiências dos sujeitos que se configuram em imaginários e práticas culturais (Maffesoli, 2001), (re)construído cotidianamente por suas narrativas (RICOUER, 1994, 1995,1997), buscou-se construir um percurso metodológico capaz de atender ao desafio de se apropriar das narrativas sobre processos culturais e sociais ainda em andamento.

Dessa forma, o corpus do presente trabalho é composto pelo conteúdo do site www.portomaravilha.com.br, a principal mídia para comunicação institucional da

8 Ver “Museu do Amanhã”, disponível em: https://goo.gl/cz5bQN

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Prefeitura do Rio/CDURP relacionada ao projeto de revitalização do Porto. Também adensaram o corpus dessa pesquisa observações realizadas, pelos autores, em visitas ao Porto Maravilha.

O site analisado cumpre o papel de plataforma para esforços publicitários e divulgação de informações dos projetos e os eventos a ele relacionados, mas também auxilia na pedagogia dos citadinos, dos consumidores, de fora e dentro da cidade, a fim de legitimar os processos de mudança impostos. Funciona, assim, como um ponto de convergência de outros endereços eletrônicos institucionais e de parceiros privados.

A estratégia de análise do site foi estruturada a partir da aba Notícias, como são chamadas as informações que são atualizadas diariamente sobre o Porto Maravilha, complementadas, ainda, com outros fragmentos disponíveis no veículo, dentre eles folders eletrônicos, vídeos, textos e outras seções que apresen tam descrições sobre pontos específicos do projeto e que complementam as Notícias .

Já as visitas ao Porto Maravilha foram realizadas a partir de uma aproximação com o método de observação participante, que, segundo Travancas (2012, p. 104), é fruto de muitas vozes: das vozes dos nativos do espaço observado, dos autores com quem o pesquisador dialoga e de sua própria voz. As análises das visitas estão baseadas, dessa forma, no percurso de um observador participante que recolhe pistas e lança questões a partir de investigações acerca dos aspectos culturais da região portuária, do valor simbólico atribuído aos bens materiais e da distribuição desses valores entre indivíduos e grupos que atuam nos espaços abordados para, então, identificar, como proposto, de que forma a paisagem dada, construída e organizada pelo poder publico se projeta e se reconfigura em novos imaginários e identidades culturais .

Visando observar critérios de relevância e homogeneidade do corpus (BAUER; AARTS, 2012), de maneira que fosse possível a identificação de estratégias discursivas mais significativas ao longo do período analisado e partindo do pressuposto de que a construção narrativa da marca Rio é legitimada pelo discurso de legado dos megaeventos, especialmente, a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, a coleta das Notícias veiculadas no site contempla os anos de 2011 e 2016. Já as visitas ao Porto Maravilha foram realizadas ao longo dos anos de

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2016 e 2017, nos dias 04/05/2016, 09/07/2016, 26/11/2016 e 08/03/2017, datas compreendidas entre os períodos pré e pós-olímpico, próximas do início e do término do evento.

5 Porto Maravilha para quem?

O boom de produção e consumo de imagens, serviços e eventos culturais que passa a desenhar a economia mundial contemporânea parece, no caso do Porto Maravilha, configurar-se na narrativa máxima para a construção da marca cidade que se pretende para o Rio, a partir das reformas que se operaram na região portuária. Neste sentido, a importância simbólica do projeto de reurbanização da região portuária se evidencia na análise da comunicação institucional do Porto Maravilha, com destaque, nas narrativas analisadas, para a centralidade da Praça Mauá e seu entorno, bem como seus ícones máximos da revitalização.

5.1 “Se essa praça fosse minha...”

Em conformidade com o § 7° do Art. 36º da Lei Complementar Municipal nº101, que instituiu a operação urbana do Porto Maravilha, o percentual de 3% dos CEPAC9 será destinado para a área de preservação do Patrimônio Material e Imaterial, incluindo os Programas Porto Maravilha Cultural e o Circuito da Herança Africana. Como divulgado na comunicação sobre o Programa Porto Ma ravilha Cultural, disponível no site portomaravilha.com.br, o desafio do projeto é promover mudanças que beneficiem moradores e frequentadores da região, porém preservando a identidade cultural e arquitetônica da região. Os eixos trabalhados pelo programa e divulgados em folder eletrônico disponível no site são: preservação e valorização da memória e das manifestações culturais; exploração econômica dos patrimônios material e imaterial, respeitando os princípios de integridade, sustentabilidade, inclusão e desenvolvimento social; valorização do patrimônio cultural imaterial;

9 As operações urbanas consorciadas contemplam a alienação dos CEPAC (Certificados do Potencial Adicional de Construção), que são títulos mobiliários, regulados pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) – geradoras de recursos para realização de transformações urb anísticas.

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produção e difusão de conhecimento sobre a memória da região; recuperação e restauro material do patrimônio artístico e arquitetônico; realização de diagnóstico sobre o patrimônio histórico, cultural e arqueológico.

Nesse contexto, além dos Museus, que são enunciados como o foco da visitação na Praça Mauá, as diversas manifestações que a região portuária comporta – religiosas, folclóricas, gastronômicas, artísticas – e que são organizadas em um calendário anual disponível no site analisado10. – aparecem nos discursos institucionais que tratam a cultura como entretenimento. Nestes discursos, observa - se o objetivo de efetivar a região do porto como local de lazer e entretenimento cultural, tanto para os moradores e usuários da região, como para os turistas de dentro e de fora do país, como apontam as notícias destacadas no site portomaravilha.com.br “Passaporte Cultural do Rio oferece gratuidade e descontos em até 700 atrações”11, “Praça Mauá será reinaugurada em domingo de festa”12 e “Museu do Amanhã supera marca de 500 mil visitantes” 13. Nesse sentido, como propõe Arantes (2000, p. 16-17), “governantes e investidores passaram a desbravar uma nova fronteira de acumulação de poder e dinheiro – o negócio das imagens, [...] [a] grande quermesse da chamada animação cultural [...] [que se materializa a] cidade-empresa- cultural”.

Especialmente no período dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos, a Praça Mauá foi divulgada como palco de atrações artísticas, gastronômicas (com opções diversas de alimentação, desde comidas típicas da Associação Sabores do Porto aos contemporâneos food trucks) e ativações de espaços das empresas parceiras, como a loja da Nike, o balão da Skol e o bungeee jump da Nissan. O Boulevard Olímpico , um live site promovido pela Prefeitura do Rio, contou com três espaços na cidade. O maior deles, com uma área de três quilômetros, foi instalado no Porto Maravilha. Os outros dois ficaram no Parque Madureira, na Zona Norte do Rio, e no Centro Esportivo Miécimo da Silva, em Campo Grande. Como apresentado na notícia “Boulevard Olímpico do Porto Maravilha”14, o maior live site da história das

10 Disponível em: <https://goo.gl/yRaUdy>. Acesso em: jan. 2018.

11 Disponível em: <https://goo.gl/3cr4v6>. Acesso em: jul. 2016.

12 Disponível em: <https://goo.gl/E8eFuF>. Acesso em: jan. 2018.

13 Disponível em: <https://goo.gl/cdDujz>. Acesso em: jan. 2018.

14 Disponível em: <https://goo.gl/tp6vF5>. Acesso em jun. 2017.

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Olimpíadas – reforçado pela marca #cidadeolimpica, ativada no período pré - olímpico15 –, além de transmitir as principais competições dos jogos, promoveu atividades em todo o período olímpico e paraolímpico, de 9h às meia-noite , prometendo se tornar “um verdadeiro ponto de encontro entre o espírito carioca e o espírito olímpico16”.As narrativas que tratam da cultura como entretenimento na região operam, portanto, incorporando novos valores culturais e novos padrões de vida referenciados na sociedade urbana mundializada, provocando, assim, uma tensão entre o global e o local.

Da praça política de Habermas (1984) à praça romântica de Castro Alves, não se pode negar que esta simboliza a essência do espaço público, o lócus privilegiado de sociabilização e socialidade, seja para o sujeito em sua dimensão racional ou em sua razão sensível (MAFFESOLI, 1996). Pois se a praça é do Povo ( ALVES, 1986), em paralelo aos discursos institucionais que buscam transformar a Praça Mauá em um novo símbolo vernacular da cidade, a partir da (re)constituição de sua paisagem como espaço de consumo cultural, observam-se as táticas (DE CERTEAU, 1994) que subvertem a ideologia oficial e dão novos usos à paisagem dada, construída e organizada pelo poder público.

Em visita ao Porto Maravilha17, os autores desse artigo se depararam com meninos, na maioria negros, moradores da região portuária, mergulhando no espelho d’água da Baía de Guanabara. No final do ano de 2015, quando a Praça Mauá havia sido recém-inaugurada, esse fato foi amplamente noticiado em jornais de grande circulação na cidade e chamou a atenção de quem passava pela região18. Como sugere Mello (2012, p. 174), “as determinações oficiais e do capital não restringem nossas experiências no espaço e no lugar”; os grupos sociais “reagem, recriando com sabedoria, simplicidade ou mesmo galhofa novos significados” e projetando novos imaginários e identidades culturais.

15 Esta escultura foi ativada no período pré-olímpico e permaneceu até janeiro de 2017, quando foi substituída por outra escultura interativa – “RIO_TEAMO”.

16 Disponível em: <http://www.portomaravilha.com.br/noticiasdetalhe/4584>. Acesso em: 30 jun. 2017.

17 Visita realizada em 26/11/2016.

18 Ver: https://goo.gl/n9UH7M e https://goo.gl/emYFo9 .

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Fig. 1 – Meninos moradores da região portuário em mergulho na Praça Mauá

Fonte: Flávia Mello.

5.2 Memória, ancestralidade e resistência

Nas imediações da Praça Mauá, no ano em que se iniciaram as obras do Porto Maravilha, a prefeitura anunciou a redescoberta do Cais do Valongo. O sítio arqueológico faz parte do Circuito Histórico de Herança Africana19, criado pelo Programa Porto Cultural, que é composto ainda pela Pedra do Sal, Jardim Suspenso do Valongo, Largo do Depósito, Cemitério dos Pretos Novos e Centro Cultural José Bonifácio e, desde julho de 2017, foi alçado a Patrimônio Histórico da Humanidade pela UNESCO.

Construído em 1811, com objetivo de retirar da Rua Direita, atual Primeiro de Março, o desembarque e comércio de africanos escravizados, o Cais do Valongo foi porta de entrada para negros africanos escravizados. Ao longo dos anos, sofreu sucessivas intervenções. A primeira delas, em 1843, foi para receber a Princesa das Duas Sicílias, Teresa Cristina Maria de Bourbon, noiva do (então) futuro imperador, D. Pedro II. Passou, assim, a se chamar Cais da Imperatriz. Com as reformas urbanísticas promovidas pelo prefeito Pereira Passos, no início do século XX, o Cais da Imperatriz foi aterrado em 1911.

A importância histórica do Cais do Valongo é indiscutível e sua visibilidade, assim como dos demais pontos históricos que compõem o Circuito Histórico Africano, destaca a importância histórica e cultural dos negros escravizados da

19 Informações sobre o Circuito Histórico de Herança Africana disponíveis em: <https://goo.gl/7nam3S>. Acesso em: jan. 2018.

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região portuária e da cidade. Em notícia do próprio site portomaravilha.com.br20 é possível encontrar indicações de que já se sabia desse sítio soterrado, conforme entrevista de Rubem Santos, fundador d’o Centro Cultural Pequena África, parcialmente transcrita no fragmento a seguir: “Em 2009, antes de a prefeitura pensar no Porto Maravilha, eu já havia falado com o prefeito sobre o Cais do Valongo. Só que à época ninguém acreditava muito. Eu também não insisti porque não tinha dados concretos”21. Vale ressaltar que os pontos escolhidos pela Prefeitura para o turismo patrimonial da cultura negra representam parte da presença histórica dos negros na zona portuária. A região da Pequena África22 concentra não apenas s eis, mas mais de quarenta lugares representativos da cultura afro-brasileira, como aponta o aplicativo Passados Presentes, desenvolvido a partir do Inventário dos Lugares de Memória do Tráfico Atlântico de Escravos e da História dos Africanos Escravizados no Brasil – um trabalho coordenado por Hebe Mattos, Martha Abreu e Milton Guran, no Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense (LABHOI/UFF), com apoio do Projeto Rota do Escravo, da Unesco, em 201423 . Dezenove pontos principais estão destacados no mapa, outros 42 podem ser acessados na função Perto de Mim do aplicativo.

Desde 2012, no Cais do Valongo, as Mães de Santo conduzem, no primeiro sábado do mês de julho, um ritual de limpeza, purificação e homenagem aos espíritos ancestrais dos mais de 500 mil escravos que desembarcaram no Rio de Janeiro, no período do Brasil Colonial24. Em visita ao Cais do Valongo, os autores desta pesquisa acompanharam a 5ª edição da Lavagem do Cais do Valongo25 .

20 Disponível em: <https://goo.gl/sw58ig>. Acesso em: jan. 2018.

21 Disponível em: <http://www.portomaravilha.com.br/noticiasdetalhe/4158>. Acesso em: 15 jan. 2018.

22 Expressão cunhada pelo artista e compositor Heitor dos Prazeres, no início do século XX, para designar a região portuária, área de forte presença negra na região central da cidade.

23 Informações sobre o projeto Passados Presentes disponíveis em: <https://goo.gl/ayNWEV >. Acesso em: jan. 2 018.

24 Disponível em: <https://goo.gl/xyPZye>. Acesso em: jan. 2018.

25 A 5ª Lavagem do Cais do Valongo aconteceu no dia 09 de julho de 2016, na Praça Jornal do Comércio.

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Fig. 2 – Cerimônia de 5ª Edição da Lavagem do Valongo

Fonte: Flávia Mello.

O ritual envolve cantos religiosos, água de cheiro, flores e votos de amor e paz, misturados às batidas dos atabaques dos blocos tradicionais de carnaval Filhos de Gandhi, Lemi Ayó e Orumilá. A presença do poder público na Lavagem do Cais do Valongo resume-se à institucionalização do evento, que passa a fazer parte do calendário anual do porto. Por outro lado, religiosos, transeuntes, integrantes dos blocos se apropriam do espaço de forma criativa, misturados ao consumo de bens simbólicos das barracas de comida e artesanato expostas no local, evidenciando que, para além do resgate de uma história dita oficial, o Cais do Valongo é apropriado por diversos atores com interesses distintos, é um espaço de disputas simbólicas em busca da construção de sua memória e dos seus significados para a região portuária. No entanto, seu resgate pelo poder público se deu no momento em que a

cidade estava sendo preparada para megaeventos mundiais, e o multiculturalismo e a afirmação da diversidade configuravam-se em atributos que passam a agregar valor ao projeto de marca da cidade, fazendo parte do receituário para o desenvolvimento de uma cidade global. Assim, observa-se que, em relação à Pequena África, os discursos institucionais ecoados pelo poder público se apoiam em vestígios do passado, em enunciações outrora produzidas e que, por vezes, repetem-se, para realizar um trabalho de enquadramento de memória (POLLACK, 1989).

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Desse modo, a memória coletiva (HALBWACHS, 1990), utilizada como recurso discursivo na comunicação institucional do Porto Maravilha, configura-se em elemento constituinte do sentimento de identidade, são memórias compartilhadas coletivamente que ajudam a constituir os sujeitos culturalmente como comunidades , coletividades (POLLACK, 1989). O que remete à dimensão política da construção dessas memórias, em que algumas histórias são contadas e outras silenciadas. O que está lembrado e o que está esquecido é a questão chave que orienta o senso de quem somos e quem desejamos ser. Escolher o que será lembrado é traduzir a memória em discursos manejáveis, é acionar, no presente, a memória como recurso para ancorar o planejamento do futuro, o que faz questionar a quem se destina, de fato, a revitalização do Porto do Rio.

6 Considerações finais

Este trabalho teve como objetivo refletir sobre a interseção entre os grandes projetos de revitalização urbana patrocinados pelo poder público e as disputas e tensões que envolvem os diversos atores sociais na produção de uma memória coletiva do porto do Rio. Para tanto, foram analisadas as narrativas institucionais do Projeto Porto Maravilha, através do site portomaravilha.com.br, e algumas manifestações culturais na região portuária.

O percurso da análise partiu da abordagem dos estudos culturais, da sociologia compreensiva e das teorias sobre memória para traçar alguns aspectos teóricos que permitiram pensar sobre os espaços urbanos, a construção cultural de suas identidades e seus imaginários. A recuperação de alguns rastros históricos possibilitou entender a importância histórica do porto para a cidade do Rio e, em paralelo, traçar ressonâncias e rupturas entre as reformas de Pereira Passos, no início do século XX, e atual reforma urbana pela qual passou a região portuária. Guardadas as peculiaridades de cada intervenção, é possível observar que há um elo entre os dois projetos, que trata da busca pela consolidação de um novo ethos de cidade como espaço de acumulação capitalista, como lócus do progresso, objetivando investimentos financeiros mundiais.

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“De uma hora para outra a antiga cidade desapareceu e outra surgiu como se fosse obtida por uma mutação de teatro. Havia mesmo na coisa muito de cenografia” (BARRETO, 1998, p. 87). Esta frase de Barreto comentando a escala e os objetivos da reforma urbana de Pereira Passos, que deu origem ao eufórico imaginário modernizador da República – à Belle Époque brasileira –, poderia ser repetida hoje por um morador da cidade do Rio de Janeiro ou mesmo um frequente observador dos seus espaços urbanos, ao se deparar com as novas instalações do Porto Maravilha. Em uma sociedade do espetáculo, pode-se considerar que, nas palavras de Debord (1997, p. 10), o próprio espetáculo é a afirmação de que toda a vida humana é reduzida à aparência. Neste trabalho, no entanto, observamos que, na profundidade das aparências, constitui-se uma forma de compreender a realidade. Para além de ser apenas observado, analisado, o espaço urbano é vivido, sentido, experienciado.

No Porto Maravilha, a materialidade se apresenta nas intervenções, na construção de novas praças e na revitalização de outras; na reordenação da malha viária, com a construção de novas ruas, túneis; na implantação de uma nova modalidade de transporte, o VLT (Veículo Leve sobre Trilhos); na construção de edificações exuberantes que abrigam equipamentos culturais do presente, que convivem com patrimônios culturais do passado. Mas, em conjunção com a dimensão material do espaço, observa-se que o Porto é palco para as relações, as vivências, as experiências dos sujeitos representadas em imaginários e práticas culturais que se configuram na dimensão sensível do espaço.

As intervenções urbanas realizadas na região do porto, portanto, não podem ser interpretadas somente como transformações do seu espaço material ou econômico. No trânsito entre o individual e o coletivo, entre a subjetividade e as intimações objetivas (MAFFESOLI, 2001), o Porto Maravilha se r einventa simbolicamente, em uma dinâmica onde os sujeitos, apesar de expostos a um imaginário proposto por valores institucionais, que objetivam organizar e programar a vida social na região a partir da lógica cultural do consumo, encontram, nas artes do fazer cotidiano (DE CERTEAU, 1994), brechas latentes de resistência, que se configuram em cimento, elemento de vinculação, mediação da cultura local, convergindo para uma contínua (re)construção do corpo social, seu imaginário e suas identidades culturais.

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A título de avenidas para futuras pesquisas, deve-se observar que este trabalho contempla uma leitura do projeto Porto Maravilha a partir do conteúdo do seu site oficial. Tal visão institucional poderia ser ampliada para outros documentos oficiais da prefeitura, como os planos diretores, por exemplo, abrindo novos olhares sobre este mesmo objeto ou mesmo confirmando as reflexões apontadas neste artigo.

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Recebido em: 10.10. 2018

Aceito em: 20.11. 2018

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