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Corpo, cidade e festa: as “performances do dissenso” no carnaval de rua carioca
Body, city and party: the "performances of dissent" in the Carioca street carnival
Cíntia Sanmartin Fernandes
Professora adjunta e pesquisadora (Prociência/FAPERJ) da Faculdade de Comunicação Social e do Programa de Pós- Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Coordenadora do grupo de pesquisa Comunicação, Arte
e Cidade (CAC), CNPq. Doutora em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. Pós-doutora pela
Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil e pelo Programa de Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. E-mail: cintia@lagoadaconceicao.com
Micael Maiolino Herschmann
Professor Associado IV da linha de pesquisa Mídia e Mediações Socioculturais do Programa de Pós-Graduação em Comunicação
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Pós-doutor em Comunicação pela Universidad Complutense de Madrid, Espanha, em Ciências Sociais pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, Brasil e em Ciências Sociais pela Consejo Latino-Americano de Ciencias Sociales , Argentina. E-mail: micaelmh@globo.com
Flávia Magalhães Barroso
Pesquisadora do grupo de pesquisa Comunicação, Arte e Cidade (CAC), CNPq. Doutoranda em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: flavinhamagalhaes@hotmail.com
Resumo:
O artigo objetiva refletir sobre as práticas festivas do carnaval de rua não oficial do Rio de Janeiro, privilegiando a perspectiva do corpo. Os desfiles dos blocos carnavalescos são marcados por ativismos diversos que se articulam, sobretudo, e m torno da pauta da ocupação dos espaços da cidade. Nesta comunhão entre festa e política podemos perceber a centralidade do corpo como elã vital entre a experiência festiva e as práticas engajadas politicamente. Para compreender estes movimentos festivos de perfil engajado, entendemos que a perspectiva do corpo é, a priori, uma dimensão decisiva a ser analisada. Desse modo, alicerçamos nossa compreensão no entrelaçamento de uma perspectiva ecosófica (MAFFESOLI, 2010; 2014) associada a uma prática metodológica corpográfica (JACQUES, 2012).
Palavras- chave:
Carnaval; Política; Cidade; Corpo.
Abstract:
The paper aims to reflect on the festive practices of the unofficial street carnival of Rio de Janeiro, privileging the perspective of the body. The parades of the carnival blocs are marked by several kinds of activism that are articulated, mainly, around the agenda of the occupation of the spaces of the city. In this communion between celebration and policy we can realize the centrality of the body as a vital elan between festive experience and politically engaged practices. In order to understand these fe stive movements with an engaged profile, we understand that the perspective of the body is, a priori, a decisive dimension to be analyzed. Thereby we build our understanding on
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the interlacing of an ecosophical perspective (MAFFESOLI, 2010; 2014) with a corpographic methodological practice (JACQUES, 2012).
Keywords :
Carnival; Policy; City; Body.
1 Introdução
Este trabalho é substrato de uma pesquisa mais ampla que vem sendo desenvolvida por pesquisadores da UERJ e da UFRJ, que busca não só reavaliar a capacidade da arte em modificar a experiência urbana – construindo novas ambiências –, mas também tem como objetivo repensar a relevância de ecossistemas culturais cotidianos, que são invisíveis ao radar das políticas públicas da cidade do Rio de Janeiro e ocupam significativamente o espaço público.
Um desafio que se evidenciou ao longo da pesquisa de campo foi o de refletirmos sobre o corpo e as festas urbanas dissensuais. Como compreender os deslizamentos do político nos corpos? As “estéticas das existências”? Como pensar as corporificações festivas cotidianas sem nos ancorarmos na potência dos afetos e das emoções, no Eros coletivo? A fim de “responder” a esses desafios alicerçamos nossa compreensão no entrelaçamento de uma perspectiva “ecosófica”1 (MAFFESOLI, 2010 e 2014) – que se sustenta na sabedoria sensível, na não-dissociação entre racionalidade e sensibilidade corporal – com uma miragem “corpográfica” – a qual considera que não apenas as espacialidades, mas, do mesmo modo, os movimentos e gestos do corpo indicam marcas e vestígios das experiências urbanas (JACQUES, 2012). Consideramos que a forma com que o corpo performa “cartografa” sensivelmente o espaço. Não apenas os contornos visíveis do corpo, mas também os invisíveis fazem acontecer, são instrumentos de criação, fazem mover os imaginários urbanos.
1 Maffesoli (2010, 2014) propõe uma “fenomenologia poética”, ou uma “Ecosofia sensível”, a qual se funda na “razão sensível” que devolve a importância ao phatos, decretando o fim da dominação epistemológica do cognitivo sobre o sensível. Desse modo, a compreensão das dinâmicas culturais e suas expressões - música, artes visuais e moda - no cotidiano das cidades pode ser analisada a partir das experiências sensíveis que se dão a ver nas diversas “estéticas existenciais” ou na “ética da estética”.
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Em tempos de “saturação” e frente a um Estado que tem implementado políticas públicas pouco democráticas, pode-se afirmar que as festas de rua carioca assumem papel relevante ao dar visibilidade aos anseios populares. Chama a atenção o fato de que os blocos de carnaval e até as escolas de samba que mais repercutiram e foram valorizadas socialmente em 2018 no Rio de Janeiro traziam explicitamente, nas letras das suas músicas e nas performances dos foliões, uma crítica ao contexto político nacional.
Essa perspectiva é oportuna para entender que o movimento do carnaval de rua, na sua face mais questionadora, retoma lugar de protagonismo nos dias de hoje na contramão de um processo regulatório rigoroso e do debate sobre direito à cidade. Num contexto de endurecimento das práticas regulatórias metropolitanas, a nossa hipótese é que os atores vivenciam nessas experiências musicais, de encontros desacelerados com o outro, a possibilidade de vivenciar “heterotopias” (L EFEBVRE, 2001; FOUCAULT, 2013) potentes e cotidia nas.
Vale ressaltar que no Rio de Janeiro a festa de carnaval hoje não é mais experenciada apenas no período dos quatro dias do feriado oficial, mas ela é vivenciada intensamente ao longo dos dois meses de verão, criando uma atmosfera diferenciada que tensiona com a dinâmica impessoal, veloz e funcional das rotinas dessa metrópole. Ao traçar percursos inesperados pela cidade, às formas festivas e eróticas do Carnaval de Blocos Não Oficiais do Rio acionam escapes frente a estrutura regulatória do Estado, tanto ao agenciarem novos desenhos urbanos, como também por trazerem a público um politeísmo de valores presentes nas reivindicações sexuais, de gênero, pós-gênero, raciais entre outras.
Realizando incursões na madrugada sobre viadutos, dentro de túneis ou em ruas não programadas para os desfiles, essas diversas tribos revelam a comunhão entre festa e engajamento coletivo. Esse “ativismo musical” (HERSCHMANN; FERNANDES, 2014) dispõe os instrumentos de expressão estética como modo de “transfiguração política”. Portanto, o carnaval “não oficial” convoca para si, a todo momento, a noção de transgressão ao se inscreverem nos espaços públicos fundando lugares, fundando o que nós conceituamos em outros trabalhos como sendo “territorialidades sônico-musicais temporárias”. Essas territorialidades têm um papel decisivo nos modos de ocupação dos espaços de cidades musicais como o Rio.
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A dinâmica atual desses movimentos culturais e musicais no Rio de Janeiro está relacionada à disputa das narrativas sobre a ocupação dos espaços da cidade após os anúncios de que esta metrópole seria sede de eventos como Copa do Mundo e Olímpiadas. De certa maneira, pode-se afirmar que esses movimentos culturais espontâneos que ocupam o espaço público se insurgem contra o projeto excludente de cidade que está em curso e que tem como objetivo transformar o Rio de Janeiro em uma metrópole criativa, gentrificada e globalizada.
A gentrificação, as reformas urbanas e o investimento público em relação aos megaeventos – realizados entre 2010 e 2016 – vem suscitando um intenso debate em relação à perenidade dos legados sociais dessas iniciativas. A falta de diálogo entre o poder público e as populações locais e os constantes posicionamentos autoritários do governo neste processo conferiram certa centralidade à questão da apropriação dos espaços da cidade, suscitando assim os mais diversos tipos de manifestações, dentre elas destacamos aqui as culturais e musicais.
Este é o cenário em que se montam uma série de atividades artísticas e culturais que vão disputar sentidos na praça pública em suas mais diversas correntes. O carnaval não oficial é uma das expressões relevantes que compõe essa atmosfera de tensões e conflitos na cidade atualmente.
2 Deslizamentos políticos
Opanorama que destacamos tem consequências específicas para a constituição do cenário do carnaval carioca. O incentivo público e privado para revitalização dos blocos foi incrementado após o anúncio dos megaeventos na cidade. Ao mesmo tempo , constata-se que, no período de 2000 a 2014, 294 novos blocos de carnaval foram criados e, em 2016, apenas 505 blocos foram registrados oficialmente (FRYDBERG, 2017) de um universo que supera facilmente os mil blocos de carnaval de rua. Vale salientar que ao longo da pesquisa de campo realizada entrevistamos os atores e acompanhamos uma dezena de blocos de carnaval “piratas” durante os seus cortejos nos anos de 2017 e 2018.
Oboom do carnaval de rua que ocorreu nos últimos dez anos (HERSCHMANN e FERNANDES, 2014) fez com que regras e exigências cada vez mais rígidas fossem
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cobradas pela prefeitura local para o desfile programado dos blocos. Dentre as inúmeras regras exigidas estão laudos técnicos de segurança, pagamento de taxas para o corpo de bombeiros, hora de começo e término do desfile, percurso acordado com a guarda municipal e montagem de cercas e barreiras de proteção de praças.
O descumprimento dessas regras pode acarretar em multa e possível proibição do desfile do bloco no ano seguinte. Além das regras da prefeitura, as parc erias público-privadas são cada vez mais presentes na elaboração dos blocos e estabelecem restrições e exigências de propaganda durante o desfile, evidenciando um controle sobre as imagens e signos que aparecem na festa. O patrocínio da cervejaria Antártic a, empresa filiada ao conglomerado multinacional de bebidas da AMBEV, por exemplo, proíbe a venda de cervejas concorrentes no carnaval de rua, de modo que apenas ambulantes licenciados pela empresa patrocinadora podem vender produtos nos blocos.
Em contraponto a este modelo carnavalesco altamente restritivo e regulado e a partir do cenário de insatisfação em relação à apropriação dos espaços na cidade, surge o movimento não oficial do carnaval carioca. Diogo Carvalho, fundador do Boi Tolo, um dos principais blocos não oficiais, esclarece:
Eles decidem quem sai e quem não sai. Tem várias medidas de restrição como banheiro, limpeza e segurança. Isso tem que ser feito pela prefeitura. Um bloco pequeno não consegue sair, não tem dinheiro e estrutura. Os grandes conseguem autorização porque tem incentivo e fundos. Essas medidas claramente vieram para acabar com a festa dos blocos pequenos. 2
Desde 2009, os movimentos “Desliga dos blocos do Rio de Janeiro” e “Bloqueata” organizam anualmente uma espécie de abertura não oficial do Carnaval, como forma de reunir tantos os blocos oficiais quanto os não oficiais em torno de uma agenda comum, que se opõe ao excesso de normas de controle da ocupação do espaço urbano da cidade no período do carnaval e questiona a forte presença da lógica e dos interesses de poucas empresas privadas nos desfiles.
A seguir, trecho do manifesto da Desliga dos Blocos:
2 Entrevista concedida ao site UOL por Diogo Carvalho um dos integrantes do Boi Tolo. Disponível em: <https://goo.gl/b5j9kD>. Acesso em: 05 jul. 2018.
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Devemos ser agentes, criando novos caminhos que se bifurcam, inventando o que não foi inventado, criando novas identidades e negando as imposições arbitrárias ou as tentativas de privatização do espaço público. Devemos ficar na rua o tempo todo, livres, cantando e dançando, sem parar. Para isso, é preciso ocupar áreas esvaziadas e subutilizadas durante o carnaval e também recusar o modelo empresarial da Prefeitura, apoiado por associações e blocos dependentes do poder público e do seu projeto de mercantilização da folia. A maior festa carioca deve ser livre, independente e realizada com a disposição dos foliões, pois somos um grupo de pessoas cantando e dançando a felicidade nas ruas. O carnaval é e sempre será um ato político. É a incorporação da arte no cotidiano. Lutar para preservar sua potência é lutar por uma rua que nos é sempre tirada. Avancemos foliões! Viva o carnaval, viva o Zé Pereira e o Saci Pererê. Viva o sorriso doce dos que desobedecem. Em tempos de tanques nas ruas, não retrocedamos, com
a certeza de que um dia o exército de palhaços vencerá! 3
Evidentemente, a não oficialidade do carnaval carioca é cultural, de modo que podemos identificar suas manifestações de caráter desregulamentado ou clandestino ao longo de toda a história local e nacional. Existem, no entanto, períodos em que este aspecto toma proporções de maior alcance na cidade.
Nos anos 80, por exemplo, os blocos de rua no interior dos bairros renasce ram de forma potente como resistência cultural popular após o fim da ditadura. A vontade de liberdade foi a força-motriz para a reorganização do carnaval de rua, de modo que a herança pós-ditadura foi determinante para que o movimento carnavalesco de rua se associasse aos movimentos culturais que lutavam pela independência de suas ações e negasse a intervenção do poder público (BARROS, 2013).
É preciso sublinhar que a noção de “não oficialidade” dos grupos carnavalescos não somente toma espaço na prática coletiva de rompimento com a regulação do poder público, mas, sobretudo, nos registros individuais do corpo. O protagonismo deste corpo insubordinado nos blocos clandestinos sinaliza aquilo que estamos chamando de “performances dos dissensos”, em que o registro da insubordinação se dá a ver pelo aparelho sensório-motor. É através do corpo, pelo modo de estar, na dança, na fantasia e na performance que fica visível que as práticas destes grupos operam no dissenso em que a imprevisibilidade dos percursos conduz uma atitude mais “autônoma” dos corpos-coletivos urbanos.
3 Trecho do manifesto da organização Desliga dos Blocos. Texto completo disponível em: <https://goo.gl/8Adngv>. Acesso em: 15 jul. 2018.
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Tendo em vista que a festa está relacionada a aspectos de renovação e alternância, Bakhtin (1987) associa as festividades aos tempos de crise, onde as festas têm papel relevante em dar visibilidade a anseios populares de mudança da ordem. Essa perspectiva nos é oportuna para entender que o movimento do carnaval de rua, na sua face mais questionadora, retoma lugar de protagonismo nos dias de hoje na contramão de um processo regulatório rigoroso e do debate sobre direito à cidade.
As formas festivas do carnaval “não oficial” acionam escapes à estrutura regulatória (FERNANDES; HERSCHMANN; REIA, 2018), de modo que realizam percursos inesperados principalmente na parte central da cidade. Os blocos realizam incursões na madrugada, realizando desfiles sobre viadutos e túneis. Os grupos são formulados de modo colaborativo ou a partir de oficinas de música realizadas durante o ano. Os desfiles não oficias se caracterizam por serem de pequeno alcance, justamente em função da falta de estrutura como som, trios elétricos ou segurança. Os blocos tematizam as mais diversas pautas, como as questões da homofobia, do racismo, do assédio a mulher e, sobretudo, abordam o direito de ocupar a cidade.
O retorno do carnaval de rua na sua face mais contestadora nos revela a comunhão entre festa e engajamento, relacionado à noção ativismo musical (HERSCHMANN; FERNANDES, 2014) que posiciona os instrumentos de expressão estética como modo de transformação e crítica social. O carnaval não oficial convoca para si, a todo momento, a noção de transgressão. Foucault (1994) aborda a s comunhões coletivas através da chave da catarse e sinaliza que nos processos catárticos podemos observar certa suspensão dos instrumentos de vigilância. O autor descreve muitas das cenas que presenciamos no campo:
As leis suspensas, os interditos retirados, o frenesi do tempo que passa, os corpos se misturando sem respeito, os indivíduos que se desmascaram, que abandonam sua identidade estatuária e a figura sob o qual eram reconhecidas, deixando aparecer uma identidade completamente diferente (FOUCAULT, 1994, p. 43).
A experiência de subversão do carnaval clandestino está, sem dúvida, imersa na vivência da catarse. Os espaços, elaborados coletivamente e espontaneamente, desfrutam dessa ausência dos instrumentos regulatórios. Percebemos a presença de ambulantes não-licenciados, o consumo indiscriminado de drogas, foliões e foliãs nus, a ocupação de espaços proibidos como estátuas históricas, árvores, grades de prédios
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e lugares privados como shoppings e o aeroporto. Essas práticas podem ser analisadas sob a perspectiva relacionada ao corpo, onde essas expressões presentes no carnaval pirata acionam escapes a estrutura normativa cotidiana, de modo que “ocorrem explosões, totalmente fora de controle, que se apresentam como reações, retornos do material reprimido, quando o utilitarismo se tornava forte demais” (MAFFESOLI, 2014, p. 28).
Mas, também, podemos entender que estes “retornos do material reprimido” indicam engajamentos políticos mais profundos. Barbalho (2013) indica que os coletivos culturais contemporâneos promovem movimentos “para fora” e “para dentro” do grupo, onde, ao mesmo tempo em que explicitam e visibilizam suas expressões criativas frente a uma ordem excludente no espaço público, também funcionam como espaços de pertencimento e de solidariedade constituindo lugares temporários de convívio seguro frente a tempos de incertezas.
A experiência promovida por esses grupos carnavalescos, então, extrapola os limites do momento vivido, baseados nos processos de catarse, e promove deslizamentos políticos que se referem ao próprio modo com que se constituem e também em relação às suas expressões e experiências estéticas na cidade. Argumentamos que a estrutura precária, bem como sua formação altamente colaborativa e engajada dos coletivos carnavalescos, confere centralidade aos processos de interação e expressão dos corpos. Sugerimos, nesse sentido, que as intervenções carnavalescas, apesar de temporárias, permanecem na cidade, em função da alta sensibilização coletiva dos corpos.
As atividades festivas de perfil transgressor que desafiam regras e subvertem a ordem, como é o caso do carnaval “não oficial”, promovem deslizamentos do político em relação ao “direito à cidade” (LEFEBVRE, 2001) por onde a vivência destes engajamentos é perene; ou seja, permanece de alguma forma na cidade, por conta da abertura de possibilidades de expressão do corpo no espaço público como um gesto de liberdade, um “gesto sem fim” (DIDI-HUBERMAN, 2017).
3 Corpo, cidade e festa
Refletir sobre o corpo e as festas urbanas dissensuais nos apresenta desafios metodológicos do campo dos estudos culturais e das práticas urbanas. A primeira
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questão que destacamos é o perfil fragmentado das práticas e dos grupos. O mapeamento das ações demanda um acompanhamento cotidiano e contínuo das tribos 4
(MAFFESOLI, 1998) que estão em processo constante de debate e desenvolvimento5 . Em segundo lugar, está o desafio de refletir sobre o corpo, a partir da perspectiva da não-dissociação entre subjetividades e a materialidade corporal (MERLEAU- PONTY, 2004), nos quais os processos de reinvestimento subjetivo (GUATTARI; ROLNIK, 1986) são marcados, sentidos e expressados pelo corpo. Afinal, como refletir sobre o deslizamento do político no corpo? Como pensar as corporificações festivas da crítica social?
Nesse sentido – dos desafios metodológicos – apoiamo-nos no ferramental etnográfico em que nos baseamos na noção de polifonia urbana (CANEVACCI, 1993) e nos processos cartográficos do cotidiano (BARBERO, 2004; LATOUR, 2012; ROLNIK, 2006) para acompanhar os atores por este campo subterrâneo das atividades culturais. É importante marcar que os três autores consideram que a cartografia, na sua potência, é capaz de revelar mapas cotidianos da experiência na cidade. Latour (2012) caracteriza esse mapa como um guia de viagem, onde vão se construindo caminhos, percursos e redes por onde o pesquisador traçará seus olhares. A elaboração da cartografia pretende, então, se relacionar com o espaço sob a ótica da vivência, de modo a atrelar o território às narrativas que surgem das experiências mais cotidianas.
4 Maffesolli (1998) desenvolve o conceito de tribo no intuito de caracterizar com mais acuidade as relações contemporâneas em seus aspectos cotidianos. Em contraponto da noção das coletividades bem definidas e estáveis que levam em consideração os marcadores modernos, a tribo viria a privilegiar o campo mais sensível e volátil das relações sociais. Para o autor, a tribo é uma noção primordial para o estudo da comunicação por dar relevância a multiplicidade de práticas e experiências coletivas que estão dissociadas à racionalização, institucionalização e homogeneização da vida, mas mergulhadas no ambiente imaginário do afeto e do desejo. O ambiente contemporâneo se caracterizaria assim pela ênfase no momento vivido e na pluralidade das práticas cotidianas, onde os indivíduos se articulam através de lógicas relacionadas ao presenteísmo e aos aspectos coletivos, fazendo sucumbir os aspectos da moral e do individualismo moderno. Este conceito é, para a pesquisa, decisivo para a compreensão das intervenções temporárias justamente por propor análises que se distanciam dos engajamentos políticos fixos e da identidade estanque e privilegiem as sociabilidades articuladas pelas zonas de contato efêmeras.
5 Os coletivos urbanos se caracterizam, sobretudo, pelo intenso processo de mutação. Ao longo da pesquisa presenciamos uma série de transformações e renovações dos grupos para formações coletivas de outro perfil de engajamento. Na medida que um movimento criativo se esvai, desaparece ou perde seu sentido-primeiro, outro está prestes a nascer. Nesse sentido, os movimentos coletivos são, de fato, infinitos, pois se valem das possibilidades diversas de existir e nesse processo, debatem criticamente suas ações e a cidade.
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Rolnik (2006), no mesmo caminho, entende que as cartografias vão assim se construindo junto ou seja, ao mesmo tempo ao território; o que demonstra que o processo cartográfico confere centralidade às experiências, sobretudo àquelas do campo da micropolítica do cotidiano. Este fazer-junto, o infinito fazer-em- processo que Rolnik (2006) analisa está ligado também à noção de mapa noturno de Barbero (2004), por onde o cartógrafo lança mão de um arsenal rico e atencioso de ferramentas de investigação para dar conta dos fluxos de afeto e desejo, dos pontos de fuga labirínticos inesperados. A construção cartográfica está imersa neste ambiente “noturno”, onde as imprevisibilidades das práticas se revelam e, desta forma, demandam do cartógrafo estar preparado e atento para entender as ações invisíveis que mobilizam uma paisagem que está em constante transformação.
Para a investigação do corpo, buscamos bibliografias que apresentassem especificamente este debate. Nesse sentido, nos inspiramos na corpografia, modo de investigação desenvolvido por Jacques (2012) em seu livro Elogio, aos errantes em que a autora analisa a centralidade do corpo em processos artísticos de crítica na cidade.
A corpografia é um método que se inspira na cartografia para compreender que não apenas as espacialidades, mas também os movimentos e gestos do corpo nos indicam resultados de experiências urbanas (JACQUES, 2012). Assim, a forma com que o corpo performa “cartografa” o espaço, indicando o tipo de vivência urbana inscrita no espaço e no corpo. O tipo de experiência que os atores sociais desenvolvem nos espaços se inscrevem e marcam o corpo, de modo que a corporeidade se torna também lugar de investigação da cidade. A maneira de agir e performar pode indicar experiências anteriores ou novas nos espaços e, por consequência disso, é material para compreendermos as configurações espaciais inscritas no corpo. Ou seja, a grafia do corpo é também a grafia do espaço. O corpo, nesse sentido, é assim um lugar de investigação. Deleuze e Guattari (1997) trabalham com a abertura da noção território, entendendo que o corpo também é território, este imbuído de todas as suas possibilidades: corpo-território ressignificado, corpo-território disputado, corpo - território docilizado, corpo-território reinvestido subjetivamente6. É do corpo que
6 Autores da geografia trabalham com a noção de abertura da noção de território, entendendo que o corpo é, a priori, um lugar como Santos (1996), Haesbaert (2004) e Bezerra (2012).
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olhamos, percebemos, tateamos e sentimos o mundo. A partir da sensibilização sobre o mundo que imputamos ao corpo o processo de ações, da prática: “é sempre por sua corporeidade que o homem participa do processo de ação” (SANTOS, 1996, p. 80). O corpo, para além deste material visível por onde podemos pensar os acontecimentos sociais, possui também sua perspectiva imaterial. O corpo é assim, também memória, desejo e subjetividade. Não apenas os contornos visíveis do corpo, mas também os invisíveis fazem acontecer, são instrumentos de ação, fazem mover. Sennett (1997) trabalha o corpo como enunciador da cidade em que se vive,
onde a forma dos espaços urbanos deriva vivências corporais especificas de cada povo. Em sua pesquisa sobre a história das cidades, o corpo é o objeto protagonista, em que, através da investigação do seu movimento, é possível levantar aspectos sobre cada cidade e seu contexto social. Sendo assim, é possível investigarmos o corpo como registro da cidade, entendendo que as questões da cidade sobrevivem também nas formas corpóreas. Foucault (1979), em sua investigação sobre os mecanismos de poder, também dará atenção ao corpo, entendendo que o poder atinge a corporalidade dos sujeitos, através de procedimentos de controle detalhado e minucioso dos gestos, atitudes, comportamentos, hábitos e discursos. As perspectivas de Sennett e Foucault sobre corpo e cidade investem nos procedimentos dos corpos dóceis (FOUCAULT, 1979), corpos sedentários (SENNET, 1997).
Visto que podemos identificar os procedimentos de poder sobre o corpo, podemos argumentar a existência também de corpografias urbanas que demonst ram um escape a essa ordem: o corpo insubordinado. Jacques (2012) identifica no corpo e nas experiências sensório-motoras práticas cotidianas e resistentes que atualizam os projetos urbanos, de modo a “formar um contraponto à visualidade rasa da cidade - logotipo, cidade-outdoor” (JACQUES, 2008, p. 12). O olhar atento para o corpo confere profundidade e complexidade aos espaços por encarar a experiência corpórea como lugar em que se registra certa resistência a programação da vida urbana.
A festa e sua vocação de posicionar o corpo em relação a outros corpos, do individual ao coletivo, nos fluxos de fricção e no “deslocamento do eu” (MAFFESOLLI, 2014) apresenta-nos a possibilidade do corpo em comportar uma multiplicidade infinita de experiência corporais. Ou, se fizermos uma leitura deleuziana, comporta uma multiplicidade de devires. Sant’Anna (2005) explora este
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leque infinito de possibilidade do corpo a partir na noção dos “horizontes do corpo”. Os horizontes do corpo se referem a pluralidade de experiências que se dão no elo entre o individual e o coletivo, são modos do corpo que são acionados a partir do compartilhamento da experiência.
Na observação e participação dos desfiles dos blocos engajados politicamente percebemos que o compartilhamento de afetos e de vivência coletiva apresenta brecha para o devir desviante. O corpo como elo entre a perspectiva individual e coletiva é mediador desses horizontes experienciais (SANT’ANNA, 2005) do dissenso. O sentimento de pertencimento, o compartilhamento do instante vivido é, então, decisivo em espaços onde predomina o desvio coletivo.
Assinalamos, nesse sentido, que o arranjo coletivo ao mesmo tempo que confere condições para as “performatividades do dissenso”, também depende dela para acontecer, no sentido de articular espaços de proteção para acontecer. A condição de desviante do carnaval clandestino, que realiza desfiles pelas ruas da cidade sem autorização prévia da Prefeitura e consequentemente sem os aparatos de regulação e estrutura da mesma, depende da interação positiva entre os atores para que a experiência festiva seja viável e segura para todos. Ou seja, percebemos que não só a dimensão política da reinvindicação de ocupação dos espaços atravessa o corpo, mas também as políticas afetivas relativas a noção de alteridade7 .
A cidade, ao ser praticada a partir da festa, cria outro corpo: chamemos de corpo-festivo associado aos escapes a ordem, a visceralidade e a sensibilidade. Nesse sentido, a experiência da festa de rua faz relacionar o corpo-festivo com o corpo - cidade, de modo que podemos entender que esses corpos estão a todo momento negociando, entrando em conflito, concedendo e impondo limites. Dessa maneira, nos interessa entender como o corpo-festivo deste carnaval específico lê a cidade a partir de suas condições interativas, sociais e políticas, e, a partir daí, expressa a síntese dessa
7 Nesse sentido, acionamos as pesquisas de Vivant (2012), a qual se debruça sobre as noções de cidade criativa e alteridade. A autora considera que a inventividade das práticas urbanas advém da garantia do acaso das ruas; ou seja, das brechas nas estruturas de controle. Seria a partir da tensão gerada pela alteridade inusitada e pelos encontros imprevisíveis que narrativas criativas sobre a cidade seriam elaboradas – a partir do estímulo da desregulação dos espaços. A perspectiva da autora nos é válida, pois descaracteriza a alteridade como um processo pacífico, mas encara como campo de disputa necessário para a criatividade na cidade. Para ela, a criatividade na cidade depende, sobretudo, da existência de espaços de encontro entres diferente atores sociais que viriam a elaborar, de fato, processos de alteridade – caracterizados pela negociação, pelas trocas culturais e hibridismos.
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leitura nos modos com que se movimentam. Odesafio metodológico que apresentamos aqui se refere justamente à análise dessa leitura crítica experienciada pelo corpo n essas manifestações festivas.
A reflexão sobre os blocos de carnaval “não oficial” e suas práticas dissensuais considera o corpo como registro-chave, entendendo que as formas corpóreas podem indiciar o que o projeto urbano tenta excluir; ou seja, torna visível o que está extrapolando os limites de programação daquele espaço. Nas fronteiras desta partilha do sensível criam-se cenas dissensuais (RANCIÈRE, 2005) que se confrontam com o que está sendo estabelecido como comum, demonstrando que existem rupturas, fissuras de sentido no que é percebido como imutável ou fixo. A corpografia urbana que propomos aqui reforça metodologicamente este lugar central do corpo no processo de “grafia” da cidade, por onde podemos investigar o decisivo papel das políticas do corpo em realizar a leitura crítica da cidade.
4 Corpos Insubordinados
Nas praças e ruelas que percorremos ao investigar o carnaval clandestino percebemos justamente a dinâmica dos fluxos temporários dos espaços que se dão no território geográfico. Esses fluxos reconfiguram as funções dos espaços, os modos de existência e de subjetivação dos indivíduos. Para tanto, as noções de espaço liso e estriado de Deleuze e Guattari (1997) são acionadas para pensarmos estes processos momentâneos de reconfiguração dos espaços na cidade, a partir da experiência festiva. Na medida em que lidamos com as temporalidades, efemeridades e nomadismos do carnaval podemos indicar movimentos de transformações de que se valem os espaços festivos por onde identificamos
Um conjunto de questões múltiplas: as oposições simples entre dois espaços, as diferenças complexas, as misturas de fato, e passagens de um a outro; as razões da mistura que de modo algum são simétricas e que fazem com que ora se passe do liso ao estriado, ora do estriado ao liso, graças a movimentos inteiramente diferentes (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 158).
Os espaços do centro da cidade por onde os blocos clandestinos desfilam são, predominantemente, voltados para o mundo do trabalho. A arquitetura das ruas, os tipos de estabelecimento e os horários de movimento estão relacionados ao tempo
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comercial. Assim sendo, não apenas o espaço, mas também os modos de experiência, os modos de perceber o lugar, as formas de performar estão vinculados aos parâmetros do mundo do trabalho. Ao realizar incursões à noite e de madrugada nesses espaços, os cortejos realizam processos de alteração na forma de perceber o espaço, antes concebido pela dinâmica da produtividade, graças ao movimento festivo passa a ser explorado como lugar passível de ocupação, de vivência. São espaços de reinvestimento subjetivo (GUATTARI; ROLNIK, 1986 ).
Nesse sentido, podemos refletir não apenas os processos de alisamento e estriamento dos espaços, mas também do corpo. Nogueira (2012) analisa processos de estriamento do corpo, onde são reduzidas as capacidades de experiência:
O estriamento do espaço é o mesmo aplicado ao corpo, na adesão de traços de experiência. Não há ruga, cicatriz ou invenção. Fabrica-se um mesmo corpo, um mesmo espaço, disponível ao mesmo olhar. Não há espaço para ao novo, a não ser que este seja previsível e nele não haja a possiblidade de contaminação ou composição – substancias fundamentais dos processos subjetivos, da produção das linhas de fuga, do devir (NOGUEIRA, 2012).
Se é possível pensar em processo de estriamento do corpo, podemos também analisar os momentos de alisamento. A experiência carnavalesca dos blocos clandestinos opera também no sentido de “alisar” os modos dos corpos ao promover experiências múltiplas e imprevisíveis nos espaços.
Considerando como inspiração as noções de liso e estriado, podemos investigar as incursões dos blocos clandestinos como modo temporário de alisamento. Os espaços lisos articulados pela experiência festiva não são constituídos plenamente em fluxo estável, mas promovidos momentaneamente nas brechas dos espaços estriados. Pensamos, então, num processo de alisamento interventor que aparece e se esconde nos jogos dos praticantes urbanos. A festa, por sua vez, é um dos jogos urbanos possíveis na cidade que pode promover alisamentos temporários, por ora não completos ou totais, mas que mobilizam a abertura de um campo de possibilidades de atuação na cidade.
Os regimes de sensorialidade e as conexões do corpo aos modos de subjetivação estão incluídos em um determinado espaço-tempo. Ou seja, os modos de sentir, as maneiras que percebemos a nós mesmos e o mundo favorece a compreensão de certo espaço em certo tempo. A consideração e análise do espaço-tempo se faz
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relevante, sobretudo, quando tratamos de modos corpóreos que transgridam as formas regulares de performance, pois, muitas das vezes, é a partir de uma aceleração ou lentidão do tempo ou na ressignificação dos espaços que o corpo compõe tal transgressão.
Nessa direção, Latour (2012) aponta para a possibilidade de um caminho de investigação cartográfica que beneficie as “definições performáticas” em detrimento de “definições ostensivas”. Este caminho se refere à análise dos momentos vividos pelos atores “feitos pelos vários modos lhe dão existência”; ou seja, pela pluralidade de faces e práticas tornadas visíveis pelo corpo e sua performance.
Nesse sentido, podemos notar que a noção de não oficialidade dos grupos carnavalescos toma espaço não só na prática coletiva de rompimento com a regulação do poder público, mas, sobretudo, nos registros individuais do corpo. O protagonismo deste corpo insubordinado nos blocos clandestinos assinala uma de nossas “definições performáticas”, por onde o registro da insubordinação se dá pelo aparelho sensório - motor. É através do corpo, pelo modo de estar, na dança, na fantasia e na p erformance que fica visível que as práticas destes grupos operam no dissenso. Na observação dos cortejos dos blocos não oficiais na cidade podemos destacar algumas ações que sinalizam o que estamos chamando de performances do dissenso. Alguns blocos se iniciam de madrugada e realizam desfiles longos de mais de dezesseis horas, atravessando a cidade.
A presença de setores artísticos plurais nos cortejos, como companhias de teatro que realizam declamações de poesia e sarais; atividades circenses que estão amplamente presentes com pernas-de-pau, malabares e performances de tecido; grupos de dança e instrumento afro; estilos musicais múltiplos como carimbó, música eletrônica e latina. A presença de discursos políticos em paródias de marchinhas e em palavras de ordem. O incentivo a participação coletiva dos músicos, onde muitos blocos são abertos para quem quiser tocar. A ausência de palco ou de espaços exclusivos como camarote ou abadá. A imprevisibilidade dos percursos que impelem uma atitude mais “autônoma” dos sujeitos urbanos.
Assim como aponta Sant’Anna (2005), compreendemos o corpo nas suas possiblidades plurais de experiência como “um feixe de experiências”, ainda que essa perspectiva múltipla das experiências corporais siga sendo dissolvida pela
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contaminação imagética de uma experiência corporal única relacionada ao corpo virtuoso, contemplável e eficiente.
5 Considerações finais
Diante dessa perspectiva apresentada acima, podemos exercitar as relações, e perceber as diversas possiblidades do corpo no espaço-tempo da cidade festiva. Identificamos no carnaval “não oficial” modos de sensoralidade num movimento contrário aos/às: 1) regimes de passividade, por ser colocado a todo momento em situações de encontro com o diferente e o inesperado; 2) noções de autocontrole, por submeter o corpo a uma coletividade que é dispersa, pouco identificável e imprevisível; e 3) noções de eficiência, por estar a serviço de formações do desejo do momento aqui-agora, sem previsões ou cálculos futuros.
Seria, assim, uma oposição entre o corpo eficiente e o corpo degradado. Ou seja, a experiência carnavalesca clandestina transgride as barreiras da passividade, do autocontrole e da eficiência, por estar orientada por compartilhamento efervescente festiva que exclui, temporariamente, as indicações corpóreas próprias do mundo do trabalho.
Os modos sensórios também se relacionam em como enxergamos o outro corpo. Do modo como o reconhecemos e lidamos com ele. Nesse sentido, é importante destacarmos os diálogos e as relações entre os atores envolvidos nos processos socioculturais pesquisados. A dinâmica dos blocos prioriza a interação, a espontaneidade e proximidade com o público sem utilizar cordas de separação entre músicos e foliões (são intitulados os músicos sem-corda) ou trio elétricos. Quando o cortejo está cheio, os próprios frequentadores formam uma corda, a chamada corda humana, para garantir que os músicos consigam tocar:
A corda humana é uma das coisas mais legais do bloco não oficial. Ao mesmo tempo que você fica ali se matando para não soltar a mão do outro e para que os músicos toquem os instrumentos de boa, é o melhor lugar. Você escuta o som de pertinho, vê a galera da dança, ouve o xequerê. Não
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consigo ficar muito tempo, mas quando dá eu vou lá participar da corda humana. 8
A participação de todos os foliões é imprescindível para os cortejos aconteçam de forma segura. Os trajetos são realizados, principalmente, por ruelas estreitas que demandam cuidado quando o bloco tem um grande público. A circulação do chapéu e a participação nos ensaios também são decisivas para a sustentabilidade dos blocos clandestinos. Percebemos, então, que a noção de coletividade é um dos principais aspectos que sustenta os blocos do carnaval “não oficial”, e, assim, na “eferves cência da festividade, o que predomina é o fato de ser visitado pelo outro (...) talvez fosse melhor dizer, pela alteridade em geral” (MAFFESOLLI, 2014, p. 224).
Nesse sentido, o sentimento de pertencimento, o compartilhamento do instante vivido é decisivo em espaços onde predominam o desvio coletivo em que a festividade e a condição desviante do carnaval clandestino potencializam e convocam, sem dúvida, as alteridades presentes no território.
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8 Entrevista concedida para a pesquisa em 17/08/2016 por Camille Guimarães, estudante de Biologia e frequentadora dos cortejos dos blocos não oficiais.
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