ISSN
2024, 1(1), 01-16
Representações sociais das decisões judiciais
na perspectiva dos magistrados.
Social representations
of judicial decisions from the perspective of magistrates.
Representaciones Sociales de las decisiones judiciales desde la perspectiva
de los magistrados
Juliana Xavier Trevisan[1]
Gislei Mocelin Polli[2]
Resumo
As decisões proferidas pelo poder judiciário
têm grandes repercussões
sociais. Os magis- trados procuram pautar suas decisões na legislação, mas,
diversos aspectos devem ser considerados, o que torna o processo de tomada de decisão complexo e desafiador. O objetivo desta pesquisa
foi conhecer as representações sociais dos
magistrados sobre suas próprias decisões
e o seu processo decisório. Participaram da
entrevista semiestruturada 30 juízes (10 do gênero feminino e 20 do masculino), com média de idade de 46,33 anos. Foi utilizado um questionário de caracterização
e uma entrevista semiestruturada com questões
abertas sobre fatores relacionados ao processo de decisão.
Os dados foram analisados por Classificação Hierárquica Descendente com o auxílio
do programa IRaMuTeQ, e por meio de análise de conteúdo categorial temática. As decisões judiciais
e o processo decisório estão
representados pela preocupação com a justiça da decisão, o que
inclui a função social do Poder Judiciário,
as dificuldades na to- mada
de decisão, os métodos
adotados na condução do processo e o momento da construção do convencimento. Essas informações
podem auxiliar os magistrados a uma tomada de consciência
maior so- bre o seu próprio processo decisório.
Palavras-chave: Representação Social; Decisões judiciais; Sistema de Justiça.
Abstract
Decisions handed down by
the judiciary have major social repercussions. Magistrates seek to base their decisions
on legislation, but several aspects
must be considered, which makes the decision-making process complex and challenging.
The main goal of this research
was to know
the social representations of magistrates about their own
decisions and about their decision-making
process. Thirty judges participated in the semi-structured interview (10
females and 20 males), with a mean age of 46.33 years. A characterization questionnaire and a semi-structured interview with open questions about factors related
to the decision
process were used. Data were analysed by Descending
Hierarchical Classification
with the aid of the
IRaMuTeQ program, and through categorical-thematic
content analysis.
Keywords: Social representation; Court
decisions; Justice Administration
System.
Resumen
Las decisiones dictadas por el poder judicial tienen
importantes repercusiones sociales.
Los magistrados buscan basar
sus decisiones en la legislación, pero deben considerar varios aspectos,
lo que hace que el proceso de toma de decisiones sea complejo y
desafiante. Este estudio tuvo
como objetivo conocer las representaciones sociales de los magistrados sobre sus propias
decisiones y sobre su proceso de toma de decisiones. Treinta jueces que actúan en primera
y última instancia del Tribunal de Justicia del Estado de Paraná
(TJPR) participaron de la
entrevista semiestructurada, 10 mujeres
y 20 hombres, con una edad media de 46,33 años. Se utilizó un cuestionario de caracterización y una entrevista semiestructurada
con preguntas abiertas
sobre factores relacionados con
el proceso de decisión. Los datos fueron analizados por Clasificación Jerárquica
Descendente con el auxilio del programa IRaMuTeQ, y por análisis de contenido categórico-temático. Quedó
claro que las decisiones judiciales y el proceso decisorio están representados por la preocupación por la justicia de la decisión, por la función social del Poder
Judicial, por las dificultades
en la toma de decisiones, por los métodos
adoptados en la conducción del proceso y por la el momento de la construcción del convencimiento.
Palabras clave: Representación Social, Decisiones Judiciales, Sistema de
Justicia.
Introdução
O Poder
Judiciário está entre os três Poderes do Estado brasileiro. É composto pelos
magistrados que, por meio de suas decisões, buscam solucionar os conflitos
existentes na sociedade conforme as normas pré-estabelecidas. Tais decisões têm
o objetivo de promover a pacificação social. O juiz precisa trabalhar com base
no cenário legal que é estruturado e ancorado nos preceitos constitucionais
(Duarte, 2019).
Todavia, ao
tomar uma decisão judicial o magistrado não tem por base apenas a aplicação
pura e simples do ordenamento jurídico, mas também de elementos psicológicos
(Horta & Costa, 2020). De forma a verificar se os valores e crenças do
magistrado exercem determinada influência em suas decisões, Bentancur
(2015) analisou a convicção psicológica do juiz por meio do estudo de dois
julgados. O autor verificou a existência do elemento psicológico do magistrado
no seu ato de julgar. Esse elemento, seja consciente ou inconsciente faz com
que se obtenha uma sentença mais justa e mais humana. O estado afetivo em que
uma pessoa se encontra influencia em sua tomada de
decisão, alterando a avaliação que faz das alternativas objeto de decisão
(Marques, 2013).
Exigências
relacionadas à eficiência e celeridade dos processos podem levar ao adoecimento
físico e mental dos magistrados (Cilli et al., 2022).
Nogueira (2015) indicou que com a modificação radical da rotina profissional
dos magistrados após a instalação do Processo Judicial eletrônico (PJe), apresentam-se desafios ainda muito difíceis para
serem superados, não apenas no processo decisório propriamente dito dos
magistrados, mas sobretudo, sua na saúde. A instantaneidade provocada pelo PJe intensifica a jornada de trabalho dos magistrados que,
para alcançar as metas estabelecidas, trabalham além das oito horas diárias. O
autor (Nogueira. 2015) verificou que que 92% dos magistrados entrevistados
afirmam que estendem sua jornada de trabalho e 90% dos magistrados ocupam-se
com as tarefas do trabalho nos fins de semana. Essa perda do tempo de vida para
acrescer o tempo de trabalho provoca insatisfações no tocante ao labor, o que
pode impactar de forma significativa na prestação jurisdicional.
Segundo dados
da pesquisa Justiça em Números, elaborada pelo Conselho Nacional de Justiça
(CNJ, 2022, p.119), em 2021 cada juiz solucionou 1.588 processos, mais de seis
processos por dia. Esses dados indicam um grande volume de trabalho dos
magistrados. É importante considerar que esse dado se refere apenas aos
processos solucionados, não abrangendo os atos de instrução dos processos até
que se chegue à fase final.
Em pesquisa
realizada pela Faculdade de Medicina (UFMG) com 706 magistrados, Assunção
(2011) relata que as respostas obtidas convergem para uma situação preocupante
de trabalho intenso. Foi verificado que 84,4% dos magistrados costumam levar
trabalho para casa, 64,3% declararam trabalhar nas férias e 70,4% aos finais de
semana, mesmo estando muito cansados. No tocante à saúde, nos 12 meses que
antecederam ao estudo, 33,2% estiveram em licença médica e nos 30 dias
anteriores, 26% deixaram de realizar tarefas habituais devido a algum problema
de saúde. Ainda, constatou-se que 17,5% informaram usar medicamentos para
depressão/ansiedade, 41,5% declararam diagnóstico médico de depressão, 53,8%
declararam dormirem mal, 37,8% estavam tristes, 15,1% têm chorado mais do que
de costume e 50,9% são frequentemente ou muito frequentemente vítimas de
insônia. Os resultados indicam que os magistrados têm um risco maior de
apresentar transtornos mentais se comparados com outros profissionais, como
médicos e professores de ensino fundamental do serviço público.
A exemplo do
estudo de Couto e Couto (2020), verifica-se que o estresse no ambiente de
trabalho é causa de redução da produtividade, sendo um fator que influencia
diretamente na vida profissional e nos resultados obtidos pelos trabalhadores.
No caso dos magistrados, Silva Magalhães et al. (2022) verificaram que eles
consideram a profissão extremamente estressante. O que pode levá-los a
apresentar sintomas e consequentes manifestações de estresse, além do
adoecimento mental por depressão. Esses dados apontam para a necessidade de
análises das condições de trabalho e da produtividade da classe, ao passo que
os magistrados relatam dificuldades na concentração e no raciocínio lógico em
virtude de suas condições de saúde mental (Silva Magalhães et al., 2022).
Vieira e Costa
(2013), objetivando identificar o reconhecimento do magistrado como líder pelos
seus pares, utilizou-se de pesquisa qualitativa mediante entrevistas
individuais semiestruturadas de 12 magistrados do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul (TJRS). Os autores verificaram que: 1) a liderança esperada no
Judiciário gaúcho - se verificou ser necessária para qualificar a prestação
jurisdicional e para definir objetivos de atuação, devendo ser inovadora,
criativa e de visão sistêmica); 2) o reconhecimento de líderes pelos seus pares
dentre os magistrados gaúchos - a liderança deve decorrer de eleição pelos seus
pares após iniciativa do magistrado, o qual deverá ter profundo conhecimento
jurídico e perfil inovador; e 3) dificuldades para o exercício da liderança
pelos magistrados - há dificuldades a serem superadas em âmbito estrutural e de
relacionamento, como diálogo e cooperação entre os magistrados.
Vatzco e Albuquerque
(2015) apontam a crise atual em que o Poder Judiciário se encontra e afirmam
que ela não será solucionada apenas pela mudança de postura dos magistrados. A
imposição de metas de gestão sem uma profunda reflexão, como tem se posicionado
atualmente o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), pode priorizar a quantidade em
detrimento da qualidade das decisões judiciais, pois “para julgar de forma
adequada e coerente ele precisa pensar, estudar e refletir, e não apenas
executar” (Vatzco & Albuquerque, 2015, p. 26).
Diante deste
contexto, observa-se que a teoria das representações sociais pode ser de grande
auxílio para o entendimento de como os pensamentos do senso comum ligados à
área do Direito são processados, organizados e compartilhados, e como têm
influenciado nas relações jurídicas. Pode-se entender como representações
sociais, de acordo com Jodelet (2001, p.22), “uma
forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo
prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto
social”, tratando-se de um saber do senso comum e não científico.
As
representações sociais tendem a criar a realidade (Abric,
1998), pois elas têm função orientadora. Ou seja, é com base nelas também que
as pessoas estabelecem estrutura ao seu conhecimento, estabelecem as
estratégias a serem tomadas e por fim se comunicam, guiando dessa forma os
comportamentos e práticas sociais. Desse modo, as práticas adotadas pelas
pessoas não estão pautadas exclusivamente nas características objetivas da
realidade, mas nas representações compartilhadas sobre os objetos sociais
(Polli & Kuhnen, 2013).
As
representações sociais e as práticas interagem influenciando-se mutuamente. As
representações sociais dão condições para a ocorrência das práticas, que por
sua vez podem levar a modificações das representações (Polli et al., 2021).
Assim, as representações sociais dos magistrados são formadas pelo conjunto de
experiências que esses profissionais têm no seu cotidiano, seja pelo que eles
sentem, seja pelo que aprenderam nas universidades, seja pelo que a mídia fala
do sistema judiciário como um todo, seja até mesmo pela expectativa da
sociedade em relação ao seu trabalho. Além das Representações Sociais, outros
fatores podem ter influência sobre o processo de tomada de decisão dos
magistrados.
O volume de
trabalho, o tempo disponível, questões pessoais e vieses cognitivos são fatores
que podem ter influência sobre o processo de decisão dos magistrados (Horta
& Costa, 2020). Apesar de fazerem uso de heurísticas nesse processo, como
forma de evitar os vieses, o processo deve ser pautado em um pensamento
racional e lógico, desenvolvido a partir do contraditório (Andrade, 2019).
Estudos desenvolvido no campo da psicologia em interface com o direito têm o
potencial de contribuir no estabelecimento de decisões mais adequadas à cada
caso (Gracioli & Palumbo, 2020). Os estudos de
Representações Sociais têm o potencial de ampliar o conhecimento sobre o tema,
considerando aspectos cognitivos e sociais envolvidos.
Assim, este
estudo pode vir a auxiliar os magistrados a uma maior reflexão sobre a sua
atuação e a de seu grupo, compreendendo ainda mais o seu próprio processo
decisório, reconhecendo suas próprias falhas e dificuldades e até mesmo crenças
compartilhadas que correspondam ou não ao papel que se exige atualmente dele.
Esta pesquisa poderá auxiliar também no processo de formação, tanto de
bacharéis em Direito, como no de magistrados, além de poder ajudar os
profissionais que trabalham com âmbito jurídico a compreender melhor esse
cenário. Desta forma, o objetivo deste estudo é conhecer as representações
sociais de magistrados sobre as suas decisões judiciais e identificar as
principais dificuldades e estratégias envolvidas no processo decisório.
Método
Para compor a
amostra os participantes deveriam atuar como magistrados há pelo menos cinco
anos e concordar em responder a uma entrevista semiestruturada. Participaram da
pesquisa 30 magistrados, sendo 10 do gênero feminino e 20 do masculino, com
média de idade de 46,33 anos (DP = 7,94). O tempo de carreira variou de sete
anos a 30 anos (M= 17,76, DP=7,00). Quanto ao estado civil, três eram
solteiros, 18 casados, três em união estável e cinco divorciados. Dos 30
magistrados, 24 possuíam filhos e 23 realizavam alguma atividade física
semanalmente, 20 atuavam na área 1 (Varas Cíveis), 4 na área 2 (Varas criminais
e de execução penal) e 6 na área 3 (Varas da infância e Juventude e Adoção;
Varas da Fazenda Pública; Varas de Família; Juizados Especiais Cíveis e
Criminais; e Centro Judiciário de Soluções de Conflitos e Cidadania – CEJUSC).
Para coleta de
dados, foi utilizado um questionário de caracterização (características
pessoais e profissionais) e uma entrevista semiestruturada, que foi gravada em
áudio. Na entrevista foram abordados os seguintes tópicos: pensamentos a
respeito das suas decisões judiciais, processo para estabelecimento de uma
conclusão para proferir a decisão, principais dificuldades que permeiam um
processo decisório e estratégias utilizadas para facilitar o processo de
decisão. Todo o procedimento foi aplicado de forma individual a cada
participante e em ambiente privativo. Após a realização da entrevista, foi
realizada a transcrição do áudio de forma literal.
O projeto foi
autorizado pelo Comitê de Ética (CAAE n.º 97597218.2.0000.8040). Na sequência,
a pesquisadora teve acesso aos participantes ao se dirigir a diferentes fóruns
de uma capital do sul do Brasil, e apresentar um convite diretamente ao
magistrado, algumas vezes por meio de seus assessores. Todos os magistrados se
interessaram em participar da pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido (TCLE), após ter sido explicado o objetivo desta, os riscos
associados aos procedimentos e seu direito de recusar ou interromper sua
participação no estudo, bem como a garantia do anonimato.
Os dados
obtidos por meio do questionário foram analisados por estatística descritiva em
termos de frequência absoluta, média e desvio padrão. Os dados das entrevistas
semiestruturadas foram transcritos e as respostas às duas primeiras questões,
(1) O que Vossa Excelência pensa a respeito das suas decisões judiciais? e (2)
Como Vossa Excelência normalmente chega a uma conclusão para proferir sua decisão?, foram analisados por Classificação Hierárquica
Descendente (CHD) com o auxílio do programa IRaMuTeQ.
Na CHD os segmentos de texto são recortados e agrupados por semelhança e
diferenciação. Para tanto, a frequência das palavras no contexto é considerada.
Os segmentos de texto semelhantes são agrupados dando origem às classes. As
classes se aproximam quando possuem conteúdos semelhantes e se opõem quando os
conteúdos se diferenciam (Martins et al., 2022). As respostas às duas últimas
questões, (3) Quais as principais dificuldades que permeiam um processo
decisório? e (4) Quais estratégias Vossa Excelência utiliza para facilitar o
processo de decisão?, foram analisadas por meio de
análise temática categorial (ATC) (Bardin, 2011). As duas estratégias de
análise de dados foram utilizadas devido à característica do conteúdo obtido
por meio das entrevistas. A CHD apresenta algumas exigências para composição do
corpus de análise, como homogeneidade e volume, que a resposta as duas
questões finais não possibilitaram que fossem atendidas. Desse modo, a ATC se
mostrou como uma estratégia adequada para interpretação dos dados.
Resultados
Representações
Sociais das Decisões Judiciais
Para
compreender as representações sociais da tomada de decisão as duas primeiras
questões abertas foram analisadas conjuntamente, tendo em vista que uma
complementa a outra, pois o que o magistrado pensa sobre suas decisões está
diretamente relacionado com as representações sociais que o fazem decidir em
determinado sentido. O corpus dessa
análise resultou em 30 Textos que deram origem a 475 segmentos de texto (ST),
dos quais 416 (87,58%) do total foram considerados na Classificação Hierárquica
Descendente (CHD).
Observa-se pela
CHD que as respostas foram distribuídas inicialmente em cinco classes. A
primeira partição do corpus opõe as
classes 2 e 1 às classes 4, 3 e 5. Em uma segunda partição, a classe 5 se opõe
às classes 4 e 3. Na terceira partição, a classe 2 se opõe à classe 1 e a
classe 4 se opõe à classe 3. Em cada uma das classes foi apresentado o título,
o número de STs que as compõem e as variáveis
associadas, quando havia, e as palavras que as compõem. O tamanho das palavras
na figura é proporcional às suas frequências. Os resultados do CHD estão
apresentados no dendrograma que é a figura ilustrativa da distribuição das
classes (Figura 1).
Figura 1
Dendrograma das RS sobre as Decisões Judiciais
A Classe 2,
denominada como construção do convencimento, foi composta por 63 STs que representam 15,14% do corpus. Seu conteúdo é
representado por STs que contém palavras como:
convencimento, formar, inicial, instrução, final, contestação, o que demonstra
como o magistrado forma o convencimento para a tomada da decisão judicial,
conforme o ST:
Então,
para eu me sentir bem seguro eu desprezo tudo o que está sendo feito e vou
permitindo a produção de provas e só vou considerar, analisar as provas ao
final para ter uma visão bem ampla para poder formar meu juízo de
convencimento. (Magistrado 30, masculino, área 02, 23 anos de magistratura).
A Classe 1,
denominada Subsídios para tomada de decisão, foi composta por 62 STs que representam 14,9% do corpus. Seu conteúdo é representado por STs
que contém palavras como: prova, auto, ônus, oral, alegação, deixando claro a
preocupação do magistrado com a colheita de provas nos autos para prolatar a
sentença, como ilustram o ST:
Eu
já me convenci que é preferível muitas vezes estender um pouquinho o processo e
ouvir as partes do que julgar antecipadamente, eu geralmente não insisto em
julgamento antecipado, salvo se tem documento e ele é muito claro e que não
haverá erro. (Magistrado 09, feminino, área 01, 17 anos de magistratura)
A Classe 4,
denominada como função social da decisão judicial, foi composta por 96 STs que representam 23,08% do corpus. A classe discute
direito à liberdade, à integridade física e psíquica e de âmbito familiar, ou
seja, questões mais complexas de serem decididas. Seu conteúdo é representado
por STs que contêm palavras como: área, trabalhar,
sociedade e precisar, demonstrando o comprometimento do magistrado para com a
sociedade, conforme demonstram o conteúdo da classe no ST:
Cada
indivíduo aqui precisa ter a melhor prestação jurisdicional com o melhor
atendimento multidisciplinar, é uma área que envolve vários setores atuando. O
judiciário muitas vezes nessa área é coadjuvante, o Direito inclusive é
coadjuvante nessa área, porque grande parte é psicologia, assistência social e
psiquiatria. (Magistrado 11, masculino, área 03, 15 anos de magistratura).
A Classe 3,
denominada dificuldades na tomada de decisão, foi composta por 75 STs que representam 18,03% do corpus. Esta classe se
associa aos magistrados que atuam na área 3. Seu conteúdo é representado por STs que contêm palavras como: acontecer, difícil, absolver,
querer, assessoria, demonstrando as dificuldades do magistrado para a tomada de
decisão, conforme demonstram o conteúdo de um ST:
Então
a maior dificuldade é descobrir quem tem razão, e muitas vezes não tem uma
prova muito robusta em nenhum dos lados e a questão do direito em si é muito
simples de ser julgada, o grande problema é compreender exatamente os fatos.
(Magistrado 13, masculino, área 03, 25 anos de magistratura).
Por fim, a Classe
5, denominada de Justiça nas decisões, foi composta por 120 STs que representam 28,85% do corpus, seu conteúdo é representado por STs
que contém palavras como: procurar, justo, lei, decisão e tribunal, comprovando
a preocupação dos magistrados com a justiça de suas decisões, consoante o
conteúdo da classe em um ST:
Aqui
no cível estamos enxugando gelo. A quantidade de processo é gigantesca e dentro
desse contexto eu procuro julgar da maneira de forma mais justa e correta
possível com o que se apresentar no processo, com o que vem para nós.
(Magistrado 01, masculino, área 01, 9 anos de magistratura).
Principais Dificuldades e Estratégias que permeiam
o Processo Decisório
No que tange à
análise das questões referentes às principais dificuldades e estratégias que
permeiam o processo decisório, foram respeitadas as três fases de análise de
conteúdo proposta por Bardin (2011): pré-análise;
exploração do material; o tratamento dos resultados, a inferência e a
interpretação. Na primeira fase, de pré-análise, foi
realizada uma leitura flutuante do corpus, na qual foram estabelecidos os
indicadores de possíveis temas e definido o procedimento de trabalho, no caso
por aproximações progressivas e abordagem quantitativa, devendo estar presente
no corpus no mínimo duas vezes cada unidade de registro. Em relação às
dificuldades dos magistrados para a tomada de decisão constatou-se 22 unidades
de registro, ao passo que quanto às estratégias utilizadas pelos magistrados
para a auxiliar o processo decisório, observaram-se 26 unidades de registro.
Na segunda fase da
análise, de exploração do material, foi realizada a leitura exaustiva do corpus
com a finalidade de codificá-lo, escolhendo as unidades de registro, contagens,
categorização em subtemas por meio de classificação analógica e progressiva dos
elementos. A partir daí foram estabelecidas duas categorias: Dificuldades e
Estratégias.
Dificuldades
A categoria
“dificuldades que permeiam o processo decisório” é constituída pela fala dos
magistrados que relataram as tribulações por eles enfrentadas no dia a dia
forense que influenciam direta ou indiretamente no processo decisório, tendo
sida estruturada em quatro subtemas, quais sejam: processual, estrutural,
política e social.
O subtema
denominado de processual esteve
presente na fala de 15 dos 30 magistrados entrevistados. Refere-se às
dificuldades ligadas ao âmbito procedimental do processo judicial, ou seja, aos
atos processuais praticados no decorrer do processo judicial que influenciam no
julgamento do litígio, como o desafio de prolatar uma decisão que possa ser
executada, o que alegaram ser extremamente desafiador e estressante diante do
volume e fluxo intenso de processos que atuam, conforme relato:
Geralmente
no cível a construção do processo decisório em termos cognitivos não é
problemática. O juiz que está bem-preparado, bem treinando, geralmente não tem
dificuldade em saber qual a melhor solução para aquele caso em concreto (...).
É um processo analítico simples. O problema é você dar efetividade, concretizar
a decisão de forma a satisfazer o problema das partes. (Magistrado 02,
masculino, área 01, 08 anos de magistratura).
Cumpre mencionar
que umas das dificuldades citadas pelos magistrados era a produção da prova,
principalmente na área 2 e 3, onde envolve questões ligadas à liberdade e
estado da pessoa e nas situações em que parte não tem condições financeiras de
arcar com o custo da produção da prova. No campo criminal apontou-se grande
espaço de tempo entre a prática do crime e realização da audiência, não tendo
mais a vítima e/ou testemunhas condições de se lembrarem adequadamente dos
fatos ou de fazer qualquer reconhecimento do autor do crime. Outra dificuldade
também apontada pelos magistrados é que embora haja ótimos advogados, como em
todas as profissões há aquela parcela mal preparada e que não produz uma prova
robusta para comprovar o direito do seu cliente.
O subtema estrutural esteve presente na fala de
quase todos os magistrados entrevistados, salvo de 2 deles. Diz respeito às
dificuldades ligadas a questões administrativas do Poder Judiciário, como de
estrutura do Tribunal, de gestão administrativa e de servidores públicos que
influenciam direta ou indiretamente no processo decisório, consoante
declaração: “Estou numa vara estatizada e aqui eu tenho que lidar com inúmeras
atribuições, atos administrativos que tiram o meu foco do meu dever principal
que é julgar” (Magistrado 10, masculino, área 01, 22 anos de magistratura).
O subtema político esteve presente na fala de 18
entrevistados, referindo-se ao posicionamento dos Poderes do Estado perante a
sociedade, do Tribunal de Justiça perante os juízes de primeiro grau, bem como
da sociedade para com a própria magistratura, como o relato: “Tem vítima que
alega estar sendo ameaça e não temos como oferecer proteção a ela, por mais que
tenha programa de proteção, ele não funciona como deveria.” (Magistrado 12,
feminino, área 02, 17 anos de magistratura).
Dentre essas
dificuldades apontadas uma das mais presentes no dia-a-dia forense é a cobrança
excessiva de celeridade processual por parte da Corregedoria de Justiça e do
Conselho Nacional de Justiça, por meio de imposição de cumprimento metas, sob
pena de responder processo administrativo por excesso de prazo com o processo,
frente ao número excessivo de processos por magistrados, como um deles expõe:
“nosso tempo é de 30min, 1hora, no máximo 2h para estudar um caso mais complexo
e dar os primeiros comandos e depois, na sequência, os demais” (Magistrado 1,
masculino, área 01, 9 anos de magistratura).
O subtema social é um desafio presente na fala de
12 dos magistrados, e refere-se à ausência de valores na sociedade, como falta
de responsabilidade e comprometimento de pais para com suas crianças e
adolescentes, de cooperação processual dos advogados para a realização de
acordos e de boa-fé de alguns cidadãos, que acionam a máquina judiciária com
puro intuito de obter vantagem ilicitamente, como declaração: “Hoje o objetivo
da família (seja ela em que formato for) é ser feliz e o ser feliz não importa
como esteja o próprio filho” (Magistrado 22, feminino, área 03, 22 anos de
magistratura).
Estratégias
A categoria
“estratégias que facilitam o processo decisório” é composta por relatos de
magistrados a respeito de suas atuações no dia a dia visando sanar os problemas
que dificultam direta ou indiretamente o processo decisório. Referida categoria
foi formada por quatro subtemas, quais sejam: processual, estrutural, social e
pessoal.
Processual é o subtema
ligado à atuação do magistrado nas várias fases do processo com o objetivo de
facilitar o máximo possível o processo de decisão. Observa-se nas 25 falas dos
30 entrevistados o cuidado de guiar o processo para ao final conseguir prolatar
uma decisão mais célere, justa e eficaz, dentro das condições que possuem, de
acordo com o relato:
O
juiz tem que saber presidir não só o processo, mas a audiência também. Na hora em que você se coloca na frente das partes é que
você efetivamente extrai uma verdade em que às vezes ambas as partes sonegam
nas petições. Eu acho muito interessante dar a sentença na audiência de
instrução e julgamento porque as partes estão presentes e você explica o porquê
que você está dando a sentença daquele jeito. (Magistrado 21, masculino, área
01, 21 anos de magistratura).
Pode-se citar como
estratégia utilizada pelos magistrados para coibir erros de pedidos mal
formulados é ser criterioso quando da análise da petição inicial, determinado
as emendas necessárias para que o processo inicie de forma correta e ao final a
sentença possa ser eficaz.
O subtema estrutural das estratégias está presente
em 22 das declarações dos magistrados, e diz respeito às práticas
administrativas por eles tomadas em relação à organização de seu gabinete,
autogestão e gestão com liderança de toda a equipe a ele subordinada, como se
observa na declaração: “Percebi que para que ter qualidade no que é feito no
fórum eu primeiro preciso cuidar dos que estão aqui.” (Magistrado 26, feminino,
área 03, 20 anos de magistratura).
O subtema social estava presente na fala de dois
dos entrevistados, referindo-se à estratégia utilizada por eles de troca de
experiências, de forma a unificarem o entendimento e evitar contradições e mais
demandas desnecessárias, conforme declaração: “Isso ajuda a aplacar esse tipo
de ação para que não se precise mais acionar o judiciário para resolver mais
essa questão, pois ele já tem um posicionamento firme quanto à existência ou
não do direito”. (Magistrado 1, masculino, área 01, 9 anos de magistratura).
Por fim, o subtema
pessoal foi o mais presente nas declarações dos entrevistados, sendo
estratégias aplicadas por 26 dos 30 magistrados. Refere-se às atitudes deles
para com eles, trabalhando o autocontrole, gestão, motivação e estudo, conforme
demonstra o relato:
“O
juiz tem que ter humildade, resiliência, saber que não é Deus e que pode errar,
que não acerta toda hora. Quando tenho problema para resolver simplesmente
tenho que ir lá e resolver.” (Magistrado 23, feminino, área 03, 29 anos de
magistratura).
Discussão
O objetivo desta
pesquisa foi de conhecer as representações sociais dos magistrados sobre suas
próprias decisões judiciais, como formam seu convencimento, que dificuldades
enfrentam e que estratégias utilizam no processo decisório, tendo como foco a
discussão de aspectos sociais do processo de decisão judicial. Foi possível
verificar que as representações sociais dos magistrados a respeito das suas
decisões judiciais dizem respeito à aplicação da lei, da justiça nas decisões e
da função social que ela exerce. A construção do convencimento ocorre por meio
da análise detida das provas constantes nos autos dos processos. Verificou-se,
ainda, que as práticas compartilhadas entre os magistrados estão direcionadas à
boa colheita das provas e à boa condução do processo.
Observou-se que as
principais dificuldades apontadas pelos magistrados para o exercício de sua
profissão são o volume excessivo de trabalho que, somado à insuficiência do
número de assessores e a cobrança excessiva de celeridade no andamento dos
processos, prejudicam o bom julgamento destes, gerando, inclusive, uma crise de
autoridade e desvalorização da magistratura. Para o enfrentamento dessas
dificuldades os magistrados apontaram como principais estratégias a utilização
de ferramentas de administração, ligadas à gestão e à liderança, ainda que de
forma muito tímida e incipiente, além de objetividade, foco e desapego do
formalismo.
Este estudo
permitiu verificar a existência de uma sobrecarga de responsabilidade que os
magistrados tomam para si na resolução dos conflitos da sociedade. Eles
consideram suas decisões de grande relevância social, razão pela qual procuram
agir com justiça e sempre atrelados na lei. Em suas falas trazem inúmeras
dificuldades a serem enfrentadas no dia a dia para uma boa entrega da prestação
jurisdicional, relatando todas elas como dificuldades externas a eles, sejam
elas processuais, estruturais, políticas ou sociais, ao passo que visualizam as
estratégias para enfrentamento dessas dificuldades como internas, ou seja, que
todas elas decorrem de ação única e exclusivamente deles.
Isso pode
acarretar inúmeros problemas de saúde a esses profissionais, dentre eles o
estresse ocupacional, pois o excesso de atividade e os conflitos de valores
estão entre as causas de estresses mais relatadas no ambiente profissional (Sadir & Lipp, 2011). O alto número de audiências e as
sentenças proferidas influenciam fortemente no desenvolvimento do estresse
ocupacional (Silva Magalhães et al., 2022). Ademais, o estresse do magistrado
pode interferir também no julgamento dos processos, uma vez que “tomamos
decisões com base no modo como nos sentimos no preciso momento” (Marques, 2013,
p.194).
Ademais,
observou-se a frustração no exercício profissional dos magistrados. A exigência
de atingimento de grande celeridade processual e alta produtividade, deixando
de lado a avaliação qualitativa de suas decisões judiciais, tem como
consequência a prática de atos sem o estudo aprofundado dos casos e
amadurecimento de suas decisões. Isso pode elevar o risco de prolação de
decisões incorretas ou injustas. Essa forma de atuar choca-se com o que eles
pensam a respeito de como devam ser proferidas suas decisões, gerando um
conflito interno entre as práticas que estão sendo obrigados a adotar e as
representações sociais de suas próprias decisões. Para Rouquette
(1998) o desajuste entre as representações sociais e as práticas leva,
geralmente, a um reajuste das primeiras, uma vez que as práticas reiteradas são
um agente de transformação das representações sociais.
Dessa forma,
persistindo esse conflito, corre-se o risco de os magistrados terem suas
representações sociais reconfiguradas no que tange ao seu processo decisório,
como pode-se perceber com o relato de alguns magistrados. É possível hipotetizar que alguns magistrados ajustaram algumas
representações sociais em razão da prática de determinados comportamentos que
foram obrigados a adotar por determinação do tribunal a que são subordinados.
Por exemplo, pode-se mencionar o fato de que muitos magistrados anteriormente
eram avessos ao estabelecimento de metas para julgamento, tendo a convicção de
que a predeterminação destas não seria possível em razão de que cada processo
exigia um tempo de estudo e maturação diferente. Porém, pode-se inferir que a
adoção dessa prática imposta acabou provocando, depois de algum tempo, a
mudança de suas próprias crenças acerca da possibilidade de se prefixar uma
quantidade mínima de processos a serem julgados em determinado período, como
apontado por Rouquette (1998) sobre o ajuste das
representações sociais em função das práticas.
Constata-se assim
o poder das representações sociais de guiarem os comportamentos e práticas da
sociedade, possibilitando que pessoas e grupos possam dar sentido às suas ações
e possibilitando a compreensão da realidade por meio de um sistema de referências
próprios. Com isso a adaptação à realidade se torna possível (Abric, 1998).
Outro ponto a ser
discutido é que, apesar de os magistrados estarem fortemente imbuídos em
promover efetiva celeridade processual, falta-lhes competência administrativa e
de gestão para tanto. Nesse mesmo sentido foi realizado um estudo com doze
magistrados de Portugal no qual se observou, como principais conflitos, a
incompatibilidade entre a realização de atividades judiciais e administrativas
(Guimarães et al., 2017). No cenário jurídico atual há uma cobrança excessiva
para se imprimir celeridade processual e o despreparo do magistrado como
administrador é considerado uma das causas da morosidade da Justiça, embora seu
preparo técnico jurídico seja reconhecido (Rosso, 2010). Muitos magistrados
relatam que tiveram de adotar novas técnicas para diminuir o tempo de análise
de cada processo e aumentar a sua produtividade, sem perder tanto a qualidade
da prestação jurisdicional.
Percebeu-se,
assim, que os magistrados mudaram alguns comportamentos, adotando novas
práticas de trabalho de forma a trabalhar de uma maneira mais estruturada,
desenvolvendo a gestão do gabinete, delegando tarefas aos assessores, criando
metodologias para a condução do processo e treinando sua equipe cada vez mais,
ou seja, deixando de ser um juiz artesanal para se tornar um juiz gestor. Essa
mudança não decorreu de alteração nas suas representações sociais sobre o seu
papel enquanto magistrado, mas em razão da necessidade de se adaptar ao novo
cenário devido às exigências sociais, políticas e institucionais, o que não
impede uma futura mudança da identidade profissional desses magistrados em
decorrência dessas práticas. Não se trata de retirar do magistrado o poder
jurisdicional, mas de dominar certas técnicas de gestão para que consiga gerir
a sua atividade principal que é a de julgar.
Pode-se observar
que essa mudança ainda é muito tênue entre os magistrados, tendo ficado
evidenciado pela fala dos participantes que a grande maioria é contrária a essa
nova postura de magistrado gestor. Percebe-se que a identidade do magistrado
está fortemente baseada em normas, costumes e valores sociais historicamente
construídos, sem vínculo com funções de gestão e administração. Observa-se essa
cisão desde a preparação acadêmica e ingresso na carreira, ante a ausência de
disciplina obrigatória específica nas faculdades de Direito, e não exigência de
serem detentores de tais habilidades quando foram selecionados no concurso
público, reforçando a crença de que sua função é unicamente julgar.
Há também aqueles
magistrados que alegam aversão a essa função administrativa ou falta de tempo
disponível para tanto, decorrente da imensa carga de trabalho ou, ainda, porque
não foram devidamente estimulados e convencidos pelo tribunal a que estão vinculados
a buscar o conhecimento dessa nova área, que não é de natureza jurídica,
inobstante o entrelaçamento cada vez mais presente entre as funções
jurisdicionais e administrativas. Nesse caso, observa-se que as identidades
sociais dos magistrados servem de ancoragem para as representações sociais de
suas decisões e seu papel na sociedade, refletindo na forma de atuarem na
prestação jurisdicional, gerando dificuldade de inserção de novos
conhecimentos. O fato de um grupo partilhar representações pode fazer com que
utilizem processos identitários semelhantes, reconhecendo semelhanças entre
membros dos próprios grupos (Ribeiro & Antunes-Rocha, 2021).
Pelos discursos,
observa-se que essa identidade se faz presente nos próprios magistrados
integrantes da cúpula do tribunal, que por serem também provenientes da
magistratura, não têm habilidades de gestão e liderança o suficiente para
estimular e convencer os magistrados sobre a relevância destes buscarem novos
conhecimentos por meio de cursos na área de gestão e administração
disponibilizados pelo próprio Tribunal, por meio de sua Escola da Magistratura.
Abric (1998) menciona que a forma como um grupo se apropria
de um objeto social ocorre em consonância com as experiências vividas que, por
consequência, pode ou não afetar a construção da identidade do grupo,
orientando e justificando as práticas adotadas. O objeto social no presente
estudo é essa nova função gestora do magistrado.
Por fim, pode-se
observar por meio dos relatos as representações sociais dos magistrados quanto
ao modo de julgar, ficando demonstrado pelos relatos que a grande maioria deles
acaba por formar seu convencimento sobre a causa apenas quando irá proferir a sua
decisão final e não no curso do processo. As justificativas vão desde em razão
do grande volume de trabalho até para não se condicionar até colher todas as
provas necessárias para o julgamento. Percebe-se que a última justificativa
está alinhada com a teoria da decisão.
Ao analisar as
representações sociais das decisões judiciais verifica-se que a preocupação dos
magistrados em proferir uma decisão correta e justa os conduzem a determinadas
práticas, como deixar para formar seu convencimento apenas no momento posterior
à colheita de todas as provas do processo, o que, geralmente, ocorre ao final
da audiência de instrução ou, na inexistência desta, somente por ocasião da
prolação da sentença. De acordo com os relatos dos magistrados, eles agem de
tal forma a fim de evitar que seu juízo de valor fique condicionado a um
prejulgamento equivocado. Esse comportamento pode ser explicado pela teoria da
dissonância cognitiva, desenvolvida por Leon Festinger,
que indica que a inconsistência entre ideias ou entre crenças e ações leva a um
desconforto mental e sensação de angústia (Andrade, 2019).
Considerações Finais
Pode-se observar
que os resultados obtidos indicaram que as representações sociais das decisões
judiciais estão atreladas à lei e a justiça na decisão, bem como na função
social da decisão judicial, estando as representações sociais do modo como
proferem suas decisões judiciais representadas pela construção do convencimento
por meio da análise detida das provas constantes nos autos. Constatou-se também
que as práticas adotadas pelos magistrados estão direcionadas para a colheita
de provas e para a boa condução do processo, sendo adotadas várias estratégias
para o enfrentamento das dificuldades do processo decisório.
Verificou-se
grande sobrecarga de responsabilidade que os magistrados tomam para si na
resolução dos conflitos da sociedade, podendo lhes acarretar inúmeros problemas
de saúde, como o estresse. Também se constatou uma frustração no exercício da
magistratura desses profissionais, por não terem tempo hábil para a análise
profunda dos processos, correndo o risco de proferirem decisões incorretas,
demonstrando que nem sempre as práticas influenciam as representações sociais.
Verificou-se ainda apenas pequena parte da magistratura aceita agir com uma
nova postura na judicatura, buscando mais conhecimentos de administração e de
gestão para uma boa entrega da prestação jurisdicional, isso devido às
representações sociais de suas decisões e de seu papel na sociedade estarem
ancoradas nas identidades sociais dos magistrados. Por fim, constatou-se a
influência de algumas práticas sociais na alteração das representações sociais
de magistrados.
Essas informações
podem auxiliar o magistrado a uma tomada de consciência maior sobre o seu
próprio processo decisório, bem como ajudar os profissionais que trabalham no
âmbito jurídico a compreenderem melhor a forma com que os magistrados formam
seu convencimento e as dificuldades enfrentam em seu cotidiano. Vale ressaltar
que os magistrados entrevistados fazem parte de pequena parcela do Judiciário,
além de não terem sido abrangidos magistrados em início de carreira e comarcas
pequenas. Também não foi analisado na presente pesquisa o volume e fluxo de
processos de cada vara judicial em que os magistrados entrevistados atuavam, e
não foram entrevistados magistrados do segundo grau de jurisdição. Logo,
sugerem-se pesquisas que aprofundem o tema proposto, gerando novas discussões e
reflexões não só a respeito das representações sociais das decisões judiciais,
mas principalmente de estratégias para prevenir e enfrentar os desafios diários
presentes no exercício da jurisdição. Estimula-se que novos estudos considerem
amostras mais específicas de acordo com o tamanho das comarcas e volume de
processos das varas judiciais, podendo englobar, ainda mais, diferentes ideias
compartilhadas em futuras investigações, pois há um campo vasto a ser explorado
em torno da magistratura na Psicologia Forense pela Teoria das Representações
Sociais.
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Received: august 01, 2023
Revision received:
august 28,2023
Accepted: september 01, 2023
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[2] Programa de Pós-Graduação
em Psicologia Forense - Universidade Tuiuti do Paraná.
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